28 fevereiro 2006

Conhecimento de si no espaço/tempo

Reflectindo sobre genes no espaço e no tempo e após curto-circuito cerebral... aí vai então o produto não polido da massa cinzenta esfumaçante.

O conhecimento assenta na relação espaço/tempo. Ele emana da apreensão da diferença que se desenvolve naquele domínio. A diferença é definida como classificação ao longo de escalas observacionais, que podem ser combinadas para definir objectos.

Leia mais aqui.

13 fevereiro 2006

Seleção natural no meio acadêmico: que vença o pior?

Desde criancinha queria ser cientista. Quer dizer, primeiro queria ser veterinária mas aí entendi que o que eu queria mesmo era entender como o corpo e a natureza funcionavam. Eu não queria entender como vacinar o cachorro, mas como o vírus produzia sua doença. Cresci e mantive a curiosidade insaciável de uma criança de sete anos. Estava claro que eu devia ser cientista. Eu imaginava o cientista perseguindo apaixonadamente a razão por trás de tudo. As respostas eram para ele, ao mesmo tempo que vitais, pretexto para fazer a próxima pergunta. A ciência dos meus sonhos era a busca pela verdade, pelo saber e, portanto, pura.

Num livro belíssimo, escrito em 1925 e intitulado “Arrowsmith”, o escritor norte-americano Sinclair Lewis retrata esse idealismo e mostra que para alguns a paixão pela ciência é quase uma religião. Nele Lewis descreve o caminho tortuoso do jovem Martin Arrowsmith que, depois de experiências frustradas como clínico, entra no seu primeiro laboratório de pesquisa, sua verdadeira vocação. Emocionado, recita: “Deus, dai-me visão clara e livre-me da pressa. Deus, dai-me um ódio impiedoso e silencioso contra todo pretenso e todo trabalho pretensioso, e contra todo trabalho inacabado ou mal feito. Deus, dai-me persistência a ponto de que não me seja permitido descansar ou aceitar elogios até que meus resultados observados sejam iguais aos calculados ou até que, com satisfação devota, eu descubra e ataque meu erro. Deus, dai-me força para que eu não precise confiar em Deus.”* Cito esse trecho porque atesta ao fato de que desde muito a ciência evoca essa visão idealista. E porque, apesar de sua aura romanesca, tenho certeza de que alguma variação dessa prece já passou ou passa pela cabeça de muitos verdadeiros cientistas.

Há muitos campos na ciência que não os biológicos – penso na matemática, nas humanidades, nos híbridos como a bioengenharia - mas vou me ater ao que conheço melhor que é a pesquisa médica básica. A pesquisa não é, para minha grande decepção, desenvolvida por cientistas malucos que passam a noite em claro em algum tipo de laboratório caseiro, perseguindo idéias mirabolantes. A pesquisa do mundo real é grandemente representada pelos acadêmicos. Não digo inteiramente representada por eles pois nos Estados Unidos, Europa, e algumas partes da Ásia há uma quantidade significativa de pesquisadores trabalhando dentro das indústrias (farmacêuticas, de engenharia). Entretanto, a academia, ou seja, os laboratórios dentro das universidades, é que de fato caracteriza a ciência atual, principalmente por meio de suas publicações.

Hoje, tendo conseguido me aproximar de ser “cientista”, percebi que há uma enorme diferença entre a ciência e o cientista que eu considerava ideais, e a realidade do dia-a-dia acadêmico. Os pesquisadores deparam-se com escassês de recursos e competição ferrenha num ambiente em que o mérito é medido pelas publicações. O cientista tem que revirar mundos e fundos para encontrar agências que forneçam bolsas e, por fim, provar sua competência para ser financiado. Com os recursos obtidos produz dados que geram publicações e por sua vez fortalecem sua reputação, facilitando assim a obtenção das próximas bolsas. Nada de errado com isso. É a lei da sobrevivência.

Esse cenário é até bem parecido com um ecossistema onde há muitos animais competindo pelo mesmo tipo de alimento. Um lago com milhares de peixes e apenas algumas poucas moscas flutuando na superfície. A própria ciência, no caso a elegante teoria da evolução, explica a dinâmica de um sistema desses. Sobrevive o mais forte, o mais apto, o melhor. Ou... quem conseguir se reproduzir antes de morrer! Parece perfeito: a própria competição servindo como incentivo para melhorar, ou seja, como pressão seletiva no meio acadêmico. O resultado seria um pesquisador mais competente, produtivo e dedicado. Mas não é bem assim. Vide o caso do Dr.Woo-Suk Hwang, o cientista sul-coreano que recentemente “revolucionou” o mundo científico com suas descobertas sobre clonagem que eram, em verdade, fraudulentas. Esse pesquisador publicou seus dados falsos num dos melhores periódicos científicos da atualidade, a revista Science, e consequentemente ganhou, segundo o New York Times (10/01/2006), quantidade considerável de dinheiro do governo da Coréia do Sul. Ele não é, está provado, o cientista que busca a verdade apaixonadamente. Woo Suk passou pela pressão seletiva e sobreviveu, por um período até que longo, mas nem por isso é melhor. Em defesa do estabelecimento, não ignoro o fato de que a farsa acabou descoberta pelo escrutínio da própria academia. Mas quantas vezes, ao tratar-se de assuntos menos “quentes”, esses falsos pesquisadores sobrevivem?

Afinal, o que há de errado nessa história? A teoria da evolução está furada? Pelo contrário, a teoria da evolução está mais certa do que nunca. O que deve ser considerado é o tipo de pressão seletiva que a rotina acadêmica fomenta. O alimento, vital, é a bolsa de apoio à pesquisa, e a prova de crescimento as publicações. Fica claro nessa análise que a moeda do meio acadêmico é a palavra escrita. Nos corredores das universidades e instituições de pesquisa norte-americanas ecoa, dia e noite, “publique ou pereça” (publish or perish). Ora, é um ciclo vicioso, já que para publicar o cientista precisa de recursos. Num mundo perfeito o financiamento seria conseguido pelo melhor pesquisador, ou seja, o mais capaz de fazer uma pergunta relevante e executar os experimentos necessários para que seja respondida. Mas no mundo real as agências financiadoras não só pedem essas qualificações como exigem, muitas vezes, que o foco seja dado a certos tópicos, à chamada “ciência de ponta”. Seja uma questão de necessidade ou moda, existem áreas da ciência consideradas prioritárias. Câncer, envelhecimento, aids, fertilidade, células tronco: assuntos invariavelmente ligados a tornar o ser humano mais saudável, mais bonito, mais prolífico e dono da vida eterna.

Daí surge a primeira grande contradição e o primeiro golpe contra a essência da ciência. Pesquisar não é fácil. Requer incansáveis tentativas e erros antes do primeiro resultado significativo. O cientista está sempre às voltas com sua pergunta, tentando inventar jeitos de respondê-la, de criar novas abordagens. A meu ver, o que move a ciência verdadeira é a paixão com a qual são criadas essas novas abordagens. A criatividade, o rigor e a persistência, tão necessários para a pesquisa de qualidade, chegam ao ápice quando o assunto é importante para o pesquisador. Fica claro que o cientista que gostaria de dedicar a vida ao estudo de doenças que afligem certos morcegos na Tailândia vai sair em desvantagem. O “morcególogo” por vocação acaba tendo que deturpar sua hipótese e convencer-se de que estudar doenças de camundongos geneticamente modificados (com apoio das bolsas de pesquisa) é quase igual a estudar doenças de morcegos.

Não há dúvida que o resultado é menos que satisfatório. Com os ideais abalados, a motivação daquele pesquisador quando precisa repetir o mesmo experimento pela décima vez é pouca; sua produtividade aquém do esperado. A ciência perde, nessa seleção, o que poderia ter sido uma incrível descoberta sobre doenças de morcegos e ganha um pesquisador possivelmente medíocre e dados provavelmente irrelevantes sobre os camundongos. Eis aí outro exemplo de que a “seleçao natural” do meio acadêmico resulta, muitas vezes, no sobrevivente mais fraco. Não quero dizer que todo pesquisador que atualmente trabalha em campo diferente do que idealizou em fantasias juvenis seja ruim. De fato existem, por milagre, alguns cientistas que conseguem gostar de qualquer área porque gostam mesmo é do processo da ciência, independentemente do objeto de estudo. Mas mesmo esses, raros, se desgastam depois de alguns anos nesse lago de poucas e insípidas moscas.

O pesquisador que decide enfrentar a máquina acadêmica e perseguir seus sonhos também se desgasta. Escreve inúmeros pedidos de bolsa mas não consegue convencer os provedores (quem são eles, os comitês que avaliam tais pedidos?) de que é importante estudar o tal morcego. Nesse ponto da discussão alguns hão de argumentar que é mais útil alcançar um avanço mesmo que mediano em direção da cura de uma doença humana do que um avanço fantástico na cura dos morcegos. Quem se importa com os morcegos? Mas a verdade é que a ciência se importa – ou devia se importar. Porque ciência é, além do laboratório, das descobertas, das publicações, uma espécie de filosofia. Uma celebração da curiosidade humana, da sua alma, da sua vontade de entender o mundo. E se a ciência parar de se importar com os morcegos tailândeses, ou com os peixes cegos de grutas brasileiras, ou com a matemática teórica, então é porque a curiosiade humana está fadada a desaparecer. Estamos fadados, como raça, à posição de eternos operários. Os cientistas transformados em produtores de drogas, cosméticos, eletrônicos. E essa produção, por sua vez, rumando rapidamente em direção ao absoleto.

Se o aspecto filosófico não for suficientemente convincente, então considere quantas maravilhas úteis ao ser humano seriam perdidas se não existisse a pesquisa de coisas improváveis. O que seria dos materiais incrívelmente resistentes que surgiram a partir de estudos sobre as teias das aranhas? Vide artigo recentemente publicado no excelente periódico Nature Materials (Dezembro, 2005. Y. Liu e colaboradores). Nele é ressaltada a superioridade da seda das teias de aranha em relação a outras fibras naturais e à maioria das fibras sintéticas. Obviamente, pelo seu potencial comercial, esse tópico de pesquisa é atualmente bem financiado. Mas não foi sempre assim. Primeiro existiu o cientista idealista que estudou as aranhas e suas teias. Por pura curiosidade.

Outro problema imposto pelas forças seletivas está na necessidade de publicar incessantemente. A própria expectativa das universidades americanas em relação ao jovem cientista, professor recém contratado, inclui uma publicação original por ano. Todo mundo que trabalha na área de ciências médicas básicas sabe que é quase impossível gerar dados suficientes, relevantes, e corretos à tempo de publicar com tanta frequência. O pesquisador é quase forçado a publicar dados que nem sempre são completos ou verificados apropriadamente. Nesse ambiente, os grupos que estudam tópicos semelhantes apostam corridas insandecidas para ver quem vai publicar primeiro. Essa paranóia envenena uma outra peça essencial da ciência, a discussão. Os grupos não discutem ideías, não trocam experiências e não colaboram. Tentam, na verdade, reinventar a roda sozinhos, mantendo o maior segredo sobre seus experimentos.

Não é preciso ser o próximo Einstein para perceber que essa competição não tráz o melhor cientista à tona. Essa falta de colaboração só atrasa a ciência, atrasa os dois competidores. Mais uma vez, quem publica primeiro acaba produzindo um manuscrito às pressas e provavelmente não tão bom. Vence o melhor? Sobrevive o mais forte? Tenho dúvidas. Não consigo deixar de pensar que a ciência perdeu um manuscrito sólido e ganhou um pior, quando não levemente ou gravemente forjado. Esse último crime, do forjamento de dados, joga luz sobre um outro grande mal: a vaidade acadêmica. A vaidade e o ego de um pesquisador estão diretamente ligados ao nome da instituição a qual pertence e ao nome das revistas que publicam seus artigos. É outro ciclo vicioso que remete ao caso de Woo Suk. Para alimentar sua vaidade o pesquisador é tentado a manipular dados que, em sua forma original, não seriam dignos da cobiçada publicidade. Os resultados, erguidos subitamente à categoria de “achados revolucionários”, são publicados pelas principais revistas científicas como Science ou Nature e até viram assunto de capa. Os jornais exaltam a pesquisa inovadora e os altos círculos da ciência elogiam a instituição da qual faz parte o cientista, agora famoso. O ciclo se fecha quando as revistas mais renomadas, apesar de dizerem-se imparciais, mostram-se inclinadas a publicar a pesquisa dos cientistas de “bom nome” e de “boas instituições”.

Existem, atualmente, muitos órgãos destinados a barrar a fraude científica como o COPE (Committee on Publications Ethics, ou comitê da ética de publicações), fundado em 1997 nos Estados Unidos, e a Office of Research Integrity (secretaria da integridade da pesquisa), criada pelo governo americano em 1985. Mas a criação desses órgãos, e todas as medidas semelhantes, são tratamentos sintomáticos. Lidam com os pesquisadores desonestos ou incompetentes que são apenas sintomas da doença que aflije a ciência atual. O meu interesse maior, como cientista, reside no que está por trás dessa doença, na sua patogênese. Procuro entender a razão do surgimento desse tipo de pesquisador, dessa pesquisa deturpada, tão distanciada daquele meu velho ideal.

Claramente, há problemas com o ambiente acadêmico e com as pressões seletivas que este impõe ao cientista. Ilustro aqui alguns dos fatores negativos da academia que, como poluentes num ecossistema, selecionam cientistas defeituosos e enfraquecidos. No entanto, a academia não é a fonte de todo mal; é meramente o reflexo do problema real: a política míope governamental que comanda os recursos destinados à ciência e sua distribuição. Para meu desprazer vejo essa discussão, inicialmente sobre ciência, convergir para o assunto da política. Mas a verdade é que essa má seleção natural, ditada por “poluentes”, não vai mudar enquanto a ciência for uma baixa prioridade nos orçamentos governamentais. Estejam as guerras, a corrupção, ou a falta de visão dos governantes por trás de tamanha negligência, cabe aos pesquisadores lutar por uma política científica mais consciente. A mim, depois desse longo lamento, resta a esperança, mesmo que idealista, de que um dia o ambiente acadêmico se torne seguro e acolhedor novamente - ambiente onde perdure o ideal de Arrowsmith e a incansável curiosidade humana. E que vença o melhor.

*Prece original de Arrowsmith: “God give me unclouded eyes and freedom from haste. God give me a quiet and relentless anger against all pretense and all pretentious work and all work left slack and unfinished. God give me a relentlessness whereby I may neither sleep nor accept praise till my observed results equal my calculated results or in pious glee I discover and assault my error. God give me strength not to trust to God.”

12 fevereiro 2006

Complexidades…

A propósito de complexidades, reproduzo aqui o prefácio do livro de Stuart A. Kauffman (1995) At Home in the Universe: The Search for the Laws of Self-Organization and Complexity (Oxford University Press). Boas leituras.

“We live in a world of stunning biological complexity. Molecules of all varieties join in a metabolic dance to make cells. Cells interact with cells to form organisms; organisms interact with organisms to form ecosystems, economies, societies. Where did this grand architecture come from? For more than a century, the only theory that science has offered to explain how this order arose is natural selection. As Darwin taught us, the order of the biological world evolves as natural selection sifts among random mutations for the rare, useful forms. In this view of the history of life, organisms are cobbled-together contraptions wrought by selection, the silent and opportunistic tinkerer. Science has left us unaccountably improbable accidents against the cold, immense backdrop of space and time.

Thirty years of research have convinced me that this dominant view of biology is incomplete. As I will argue in this book, natural selection is important, but it has not labored alone to craft the fine architecutres of the biosphere, from cell to organism to ecosystem. Another source---self-organization---is the root source of order. The order of the biological world, I have come to believe, is not merely tinkered, but arises naturally and spontaneously because of these principles of self-organization---laws of complexity that we are just beginning to uncover and understand.

The past three centuries of science have been predominantly reductionist, attempting to break complex systems into simple parts, and those parts, in turn, into simpler parts. The reductionist program has been spectacularly successful, and will continue to be so. But it has often left a vacuum: How do we use the information gleaned about the parts to build up a theory of the whole? The deep difficulty here lies in the fact that the complex whole may exhibit properties that are not readily explained by understanding the parts. The complex whole, in a completely nonmystical sense, can often exhibit collective properties, "emergent" features that are lawful in their own right.

This book describes my own search for laws of complexity that govern how life arose naturally from a soup of molecules, evolving into the biosphere we see today. Whether we are talking about molecules cooperating to form cells or organisms cooperating to form ecosystems or buyers and sellers cooperating to form markets and economies, we will find grounds to believe that Darwinism is not enough, that natural selection cannot be the sole source of the order we see in the world. In crafting the living world, seletion has always acted on systems that exhibit spontaneous order. If I am right, this underlying order, further honed by selection, augurs a new place for us, expected, rather than vastly improbable, at home in the universe in a newly understood way.”

11 fevereiro 2006

Determinismos...

A discussão sobre determinismo, genético ou outro, é falaciosa.

É verdade que tanto cientistas como “homens das letras”, jornalistas e “homens de poder” contribuiram muito para a sedimentação daquela discussão, típica do meio académico, na opinião pública. As repercussões da aceitação de um determinismo genético foram devastadoras na primeira metade do séc. XX, com as leis eugenistas nos EUA ou o holocausto nazi. O debate seguiu extremado, a sua ideologização reflectida também no discurso da ciência. Um exemplo foi a crítica da Sociobiologia, de E. O. Wilson, por cientistas radicais marxistas como S. J. Gould. O debate explícito sobre determinismo genético tem vindo a ressurgir ultimamente devido aos receios do impacto da biotecnologia ligada à genómica no conhecimento da vida e do ser humano, e nos usos que daí poderão advir no melhoramento genético humano. Neste contexto, são fontes recentes interessantes alguns textos jornalísticos do último número da revista
ComCiência ou uma discussão recente no blog do jornalista científico Marcelo Leite (Pílulas anti-deterministas do Dr. Leite - X). Alguns textos (ex: Do Holocausto nazi à nova eugenia do séc. XXI, de Andrea Guerra) parecem imbuídos de grande parcialidade, originada quiçá em posições morais ou ideológicas, levando à difusão (manipuladora?) de mensagens codificadas, sejam as das metáforas dos cientistas, sejam as traduções sintéticas daquelas metáforas por parte dos jornalistas.

Leia mais aqui.

10 fevereiro 2006

Revista ComCiência, sobre genética humana

Está no ar novo número da revista ComCiência.
De meu,
reportagem "Genes e a compreensão de ser humano", com Germana Barata.

05 fevereiro 2006

O mundo condena o aborto seletivo na Índia. Às cegas.

Em janeiro deste ano um artigo publicado no periódico médico The Lancet demonstrou a ocorrência na Índia de aborto seletivo de meninas, após constatação do sexo por ultrassom. O artigo teve repercussão na mídia brasileira (ver exemplo da Agência Fapesp), mas não li nenhum artigo que apresentasse uma discussão mais aprofundada.

Faço aqui a ressalva de que escrevo este texto de forma um tanto quanto inconseqüente, pois não li o artigo original (que tem acesso restrito na internet), não fiz uma busca completa do que saiu na imprensa e não fiz uma pesquisa sobre a situação atual na Índia. Baseio minhas reflexões no que ouvi e li na Índia há cerca de dez anos.

Prabhat Jha, da Universidade de Toronto (Canadá), e colegas calculam que nas últimas duas décadas deixaram de nascer cerca de 10 milhões de meninas na Índia. O período estudado é relevante pois corresponde à generalização do uso do ultrassom. A notícia da Agência Fapesp cita um médico de Mumbai, que diz que meninas não são valorizadas naquele país. Algo meio vago, machismo mesmo, para arrepiar mesmo os levemente feministas. E o artigo científico acrescenta que não há aí influência religiosa.

O que falta discutir são os motivos por trás dessa desvalorização das mulheres. A tradição indiana dita que uma mulher, quando se casa, leva um dote. Ficar solteira é desgraça, desonra. O dote varia, em regiões rurais pode ser pago em cabras ou o que for, mas é sempre uma quantia importante em relação à economia familiar. Aquela moça não só custa para casar-se, mas ainda por cima depois disso está perdida para a família. Passa a ser propriedade da família do marido, muitas vezes uma criada da sogra e das cunhadas. Ou seja, um filho homem traz bens, uma mulher e filhos, todos os quais contribuirão para o sustento da família. Uma filha é um investimento perdido, para o qual muitas famílias simplesmente não têm os meios. Por isso, em muitas áreas da Índia é ainda comum (ou era há dez anos) o infanticídio seletivo. Pelo menos até que nasça um menino, que garantirá a “aposentadoria” dos pais.

Os resultados de Jha podem levar a crer que o melhor é não dar a opção de aborto seletivo — não oferecer ultrassom ou esconder a informação sobre o sexo do nenê. Mas como obrigar uma família a manter uma criança que virá a ser um escoadouro de recursos (que a família nem possui)? Impossível. Muitos discordarão, mas a meu ver aborto é preferível a infanticídio.

O que fazer? Mudar a cultura indiana? Quem determina que a nossa é melhor do que a deles? Há de fato uma elite globalizada na Índia que adota costumes mais ocidentais. Mas nem eles podem determinar que tradições devem seguir seus milhões e milhões de compatriotas. O que o mundo “desenvolvido” pode fazer, e quem sabe o benefício atinja as menininhas, é ajudar a reduzir o nível de pobreza nas regiões menos privilegiadas.

04 fevereiro 2006

Retorno a “2046" (Filme de Kar Wai Wong, 2004)

Sublime!, melhor ainda que o filme anterior "Amor à flor da pele" (2000). Fica a primeira impressão que o filme gravou em mim:

2046, segredo de amor
que se enterra,
sem retorno.
memória que se busca,
de onde não se retorna?
não se volta de tentar recordar,
o que não se entende.
que o amor tem uma hora certa,
uma hora errada,
que nada é se não for o momento de ser.
após enterrar segredos,
no sopé de uma montanha?
o segredo fica,
sem retorno,
adquire vida própria,
vira número de processo.
esperando que se acumulem,
e um dia seja hora.