05 fevereiro 2006

O mundo condena o aborto seletivo na Índia. Às cegas.

Em janeiro deste ano um artigo publicado no periódico médico The Lancet demonstrou a ocorrência na Índia de aborto seletivo de meninas, após constatação do sexo por ultrassom. O artigo teve repercussão na mídia brasileira (ver exemplo da Agência Fapesp), mas não li nenhum artigo que apresentasse uma discussão mais aprofundada.

Faço aqui a ressalva de que escrevo este texto de forma um tanto quanto inconseqüente, pois não li o artigo original (que tem acesso restrito na internet), não fiz uma busca completa do que saiu na imprensa e não fiz uma pesquisa sobre a situação atual na Índia. Baseio minhas reflexões no que ouvi e li na Índia há cerca de dez anos.

Prabhat Jha, da Universidade de Toronto (Canadá), e colegas calculam que nas últimas duas décadas deixaram de nascer cerca de 10 milhões de meninas na Índia. O período estudado é relevante pois corresponde à generalização do uso do ultrassom. A notícia da Agência Fapesp cita um médico de Mumbai, que diz que meninas não são valorizadas naquele país. Algo meio vago, machismo mesmo, para arrepiar mesmo os levemente feministas. E o artigo científico acrescenta que não há aí influência religiosa.

O que falta discutir são os motivos por trás dessa desvalorização das mulheres. A tradição indiana dita que uma mulher, quando se casa, leva um dote. Ficar solteira é desgraça, desonra. O dote varia, em regiões rurais pode ser pago em cabras ou o que for, mas é sempre uma quantia importante em relação à economia familiar. Aquela moça não só custa para casar-se, mas ainda por cima depois disso está perdida para a família. Passa a ser propriedade da família do marido, muitas vezes uma criada da sogra e das cunhadas. Ou seja, um filho homem traz bens, uma mulher e filhos, todos os quais contribuirão para o sustento da família. Uma filha é um investimento perdido, para o qual muitas famílias simplesmente não têm os meios. Por isso, em muitas áreas da Índia é ainda comum (ou era há dez anos) o infanticídio seletivo. Pelo menos até que nasça um menino, que garantirá a “aposentadoria” dos pais.

Os resultados de Jha podem levar a crer que o melhor é não dar a opção de aborto seletivo — não oferecer ultrassom ou esconder a informação sobre o sexo do nenê. Mas como obrigar uma família a manter uma criança que virá a ser um escoadouro de recursos (que a família nem possui)? Impossível. Muitos discordarão, mas a meu ver aborto é preferível a infanticídio.

O que fazer? Mudar a cultura indiana? Quem determina que a nossa é melhor do que a deles? Há de fato uma elite globalizada na Índia que adota costumes mais ocidentais. Mas nem eles podem determinar que tradições devem seguir seus milhões e milhões de compatriotas. O que o mundo “desenvolvido” pode fazer, e quem sabe o benefício atinja as menininhas, é ajudar a reduzir o nível de pobreza nas regiões menos privilegiadas.

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