10 dezembro 2006

DNA e sensacionalismo

Não canso de me impressionar como tudo o que diz respeito ao material genético - o humano, sobretudo - ganha proporções exageradas, vira manchete de jornal, assunto para a hora do café no trabalho. "Você viu? Descobriram que o DNA não é nada como se pensava!", e por aí vai. É muito fácil afastar-se rapidamente do que realmente dizem os artigos científicos.

O assunto do mês passado, que deu origem à capa ao lado no jornal britânico The Independent, foi a descoberta de uma variação inesperada no DNA de humanos. A informação vem de dois artigos, um deles na Nature de 23 de novembro.

Os pesquisadores responsáveis pelos artigos reanalisaram as seqüências obtidas no Projeto Genoma Humano e encontraram uma variação imensa que não vem de substituições na seqüência do DNA, mas de repetições ou deleções de partes do material genético. Uma mutação do tipo "clássico" transformaria um gene com seqüência AATGCCTGACTGAGGGTT em
AATGCCTGTCTGAGGGTT, por exemplo. O que se viu, ao contrário, foi algo do tipo AATGCCTGACGACGACGACTGAGGGTT. Esse tipo de alteração foi detectado em 12% dos genes, e pode representar uma diferença de milhares de bases (cada uma dessas letras) entre uma pessoa e outra. Os geneticistas sugerem que, como vários dos genes com esse tipo de variação estão ligados a doenças, talvez venha a se verificar que o número de repetições tenha algo a ver com propensão a desenvolver tais enfermidades. Pus o itálico para chamar atenção para a cautela expressa nos artigos científicos, que parafraseei livremente.

A revista Pesquisa Fapesp de dezembro traz na seção "Laboratório" de sua edição de dezembro um resumo para lá de sumário do artigo da Nature. A decisão por apresentar o achado numa pequena nota foi consciente. Afinal, a descoberta é importantíssima, pois abre caminho para vasculhar o material genético com mais discernimento e tentar compreender como ele funciona, mas passa muito longe de representar "o livro da vida reescrito", como apresentou o Independent.

A culpa pelo sensacionalismo não é totalmente da imprensa. A Nature e outros organismos de apoio a jornalistas produzem textos já mastigados, muitas vezes simplesmente reproduzidos em meios de comunicação. No mínimo servem de guia. Esses releases destacavam a diferença entre pessoas, que pode ser maior do que se esperava, e a importância para manifestação de doenças. A imprensa repetiu esses destaques, às vezes com certo exagero como no caso do Independent.

Procurei nos artigos originais qual seria então a semelhança entre eu e você, se não é 99,9%. Não encontrei. Porque não era mesmo o ponto central. Esse número é ainda mais interessante porque na semana anterior as revistas Science e Nature tinham publicado artigos sobre o genoma seqüenciado do homem de Neandertal, a espécie extinta mais aparentada à nossa. Aí sim, um dos pontos centrais era a semelhança entre eles e nós, 99,5%. Segundo o Estado de São Paulo, o artigo da Nature de 23 de novembro estabelece essa mesma semelhança entre dois humanos atuais. Será então que o neandertal era a mesma espécie, na verdade? O espaço para especulações é imenso. Na brincadeira com os números, a diferença entre eu e você chegou a 12% em algum jornal - uma transposição selvagem da variação que foi encontrada em 12% dos genes.

Quanto à questão da propensão a doenças, ela ainda é mera especulação. Aposto que se passará muito tempo ainda até que se descubra como - e se - essa variação se manifesta no funcionamento do genoma, e mais ainda até que se avalie seu impacto na saúde das pessoas. Marcelo Leite, em sua coluna na Folha de São Paulo (reproduzida no blogue Ciência em dia - texto "Bíblia de araque", 3 de dezembro de 2006), aproveitou o assunto para reforçar sua cruzada anti-determinismo. Claro, ainda temos muito a descobrir sobre o que há entre a seqüência do DNA e suas manifestações no organismo; mas não há aí nenhuma munição para dizer que o genoma na verdade não tem tanta influência assim sobre nós.

É preciso mais cuidado, ao escrever sobre genes e afins. É muito fácil desinformar. Não consigo deixar de comentar uma notinha na Folha de São Paulo de hoje. Uma análise do DNA em uma amostra de sangue teria provado que o motorista responsável pela morte da princesa Diana tinha bebido muito mais do que o permitido pela lei francesa. Fiquei fascinada: de onde tiraram uma amostra de sangue a esta altura?!?!? E acima de tudo, desde quando o DNA traz informações etílicas?!!! Ufa, o João achou a notícia na BBC: a análise foi feita na época, mas contestou-se que o sangue seria do motorista. Parece que foi isso que a análise mostrou, o sangue era dele mesmo. Já estava preocupada com a cervejinha de ontem à noite escrita nos meus genes...


9 comentários:

João Carlos disse...

Taí um bom começo para seu artigo para o "Roda de Ciência" de dezembro... O problema é que qualquer analfabeto, hoje, já ouviu falar em DNA e que não existem duas pessoas com o mesmo DNA. Daí, para se convencer que as diferenças são de apenas 0,1% (eu pensei que fosse até menor), vai um looooongo caminho. E é muito difícil explicar coisas complexas, como uma estrutura de DNA, para quem nem tem idéia de química básica (que dirá de orgânica...)

Eu confesso que tomei um susto com a mesma notícia sobre o motorista. Já estava imaginando o que os litros e litros de chopp que eu já tomei, poderiam ter causado a meus espermatozóides e como foi que minha mulher tinha consertado tudo para não ter parido dois hipopótamos bêbados...

Maria Guimarães disse...

concordo com você, joão carlos. é difícil explicar. mas nem pus esse texto como parte do roda de ciência porque neste caso não se trata de falar simples. se trata de evitar dar ênfase a aspectos sensacionalistas, em detrimento da notícia. nesse caso, a notícia não era que temos mais diferenças do que pensávamos, era que a diferença se apresenta em formato inesperado. mas o que é que dá mais ibope?
estava com saudades, mas o tempo pra blogar anda escasso...
abraço, bom "encontrar" com você.

Anónimo disse...

Maria: fui reler minha coluna para verificar se havia alguma passagem que justificasse sua leitura de que eu teria afirmado "que o genoma na verdade não tem tanta influência assim sobre nós", e não encontrei. É óbvio que o genoma tem muita influência sobre nós (o que quer que isso queira dizer, em sua vaguidão), mas não na FORMA como tem sido propagandeado pelo determinismo genético e pelo paradigma da ação gênica - ou seja, que tudo é ditado pela SEQÜÊNCIA do DNA (e só do DNA). Meu ponto de vista é simples: quanto mais complexidades se descobrem, EMPIRICAMENTE, na interação entre DNA, ambiente e organismo, menos se pode e deve falar e pensar deterministicamente, como preconizado no Dogma Central. Dizer que eu disse o que não disse só atrapalha a conversa. Abraços antideterministas,
Marcelo Leite

Maria Guimarães disse...

sabe de uma coisa, marcelo? às vezes tenho a impressão de que no fundo a gente concorda. mas olhamos por ângulos diferentes e cada um de nós ressalta aspectos diversos. e sobretudo, quando cada um de nós lê o outro, enxerga nas palavras um radicalismo que não estava na intenção. dá o que pensar para a próxima vez que eu escrever sobre determinismo.

eu comemoro cada dado empírico que demonstra a interação entre meio ambiente, genes e organismos. mas é munição para repisar o que a gente já sabe - é conceito que já está tão entranhado no meu pensamento que custo a entender a necessidade de discutir, de provar, de duvidar. incontáveis vezes tive que discutir e me surpreendo a cada vez. tem coisa que não aprendo.

"Se o DNA for mesmo o livro da vida" (fui reler seu texto também) me parece desnecessariamente radical. para mim ele é sim o livro da vida. mas um livro não se lê sozinho - o leitor pode tropeçar na pontuação, dar uma entonação diferente, interpretar os subentendidos de outra forma... os resultados são múltiplos!

Dogma Central, que medo! é o livro que anda debaixo do braço do Big Brother?

Anónimo disse...

Dogma Central, como você deve saber, é o nome que Francis Crick deu, sem corar, à noção de causação ou fluxo de informação unidirecional: DNA => RNA => proteína. Livro da Vida, com maiúsculas, acho que foi invenção do James Watson, mas não tenho agora certeza. O Walter Gilbert cunhou Santo Graal da Biologia. Mas não precisa ter medo, não, porque essas hipérboles de fundo religioso-determinista só servem para fazer propaganda e, como você também sabe, apenas os leitores desqualificados (não-cientistas) vão entender errado. Sim, acho que concordamos, mas a diferença está em que eu escrevo mais para uns do que para outros.

Maria Guimarães disse...

Quem serão os outros para quem escrevo? Acho que o problema é que insisto em achar que nos últimos 50 anos muito aconteceu, não estamos mais embasbacados diante da apresentação da dupla-hélice - que já não é Dupla-Hélice.

Anónimo disse...

Maria,

Os "meus" outros são pessoas que vivem à minha volta e lêem a Veja, a Folha, o Estadão e coisas piores. Essas pessoas ainda estão embasbacadas diante da hélice dupla, talvez até mais do que antes de 2000. E essas metáforas não são (só) de 1953, elas comparecem aos borbotões tanto na imprensa leiga quanto na Nature e na Science de fev.2001 e daí por diante. Leia o livro DNA, O Segredo da Vida, de Watson, lançado pela Cia. das Letras e, acredito, com muito maior penetração que O Século do Gene, de Evelyn Fox Keller. O problema não é só seu nem só meu, mas de todos: escrever para os outros supondo que eles têm a mesma representação da biologia molecular que nós.

Maria Guimarães disse...

obrigada pela chamada de atenção, ficarei atenta para explicitar sempre a visão evolutiva.

Ronaldo Angelini disse...

Só pra te informar, fiz um post onde cito este seu. Está em http://bafanaciencia.blogspot.com/2007/01/sun-nasce-pra-todos-incluindo-os.html
abr
ronaldo