Que tal, o altruísta punitivo ?
Por que e com quem, somos ou não altruístas? Haverá forma de sermos humanamente mais altruístas e cooperativos? Pois é, grandes questões na tragicomédia que é a natureza humana, que alguns pesquisadores das ciências sociais tentam abordar através de modelos matemáticos, como o que divulgo a seguir.
A evolução e persistência do altruísmo e da cooperação no mundo natural tornam-se compreensíveis à luz das teorias de seleção de grupo do biólogo William Donald Hamilton (para conhecer Hamilton e suas teorias clique aqui), que postulam que a cooperação seria uma boa estratégia para elevar a probabilidade de sobrevivência e do sucesso reprodutivo em indivíduos aparentados. A teoria poderia ser estendida, seguindo a mesma perspectiva darwiniana, para explicar a cooperação em grupos sociais humanos, entre indivíduos aparentados ou não.
Mas o que esperar de interações entre indivíduos não organizados em famílias ou outro tipo de grupos sociais? Esse é exatamente o tema do artigo que notei na PNAS de Maio de 2005. A pergunta específica do artigo é como a cooperação se pode originar e manter entre indivíduos não aparentados e com interações casuais que não contribuem para a reputação dos indivíduos envolvidos. O contexto conceitual do artigo é a teoria de jogos aplicada a bens públicos (se desconhece a teoria de jogos clique aqui).
O autor do artigo, James Fowler, propõe um modelo em que considera diferentes tipos comportamentais individuais, "numa população que tem a oportunidade de criar um bem público que é igualmente distribuído a todos os indivíduos na população". Um exemplo clássico, usado por Fowler, é a organização de batidas de caça cujos recursos serão posteriormente distribuídos pelos indivíduos da população. Imagine qual a sua atitude nessa empreitada coletiva! Com certeza, você decidiria ou não participar segundo a previsão de lucro [benefício (porção de caça) – custo (esforço dispendido na atividade)] obtido caçando em grupo por oposição a caçar sozinho. Optando por ser um participante, você poderia ainda escolher entre ser contribuinte ou não-contribuinte para o esforço coletivo que originaria o pecúlio a ser distribuído por todos os participantes. Assim, um não-contribuinte beneficiaria do esforço coletivo sem ter para ele contribuído. Já o não-participante não beneficiaria desse esforço porque empreenderia a sua própria batida de caça ou outras atividades.
Então, qual estratégia você escolheria? A resposta lógica é: depende. Dependeria de qual estratégia garantisse um lucro mais elevado, que garantisse uma maior aptidão [fitness] darwiniana na luta pela sobrevivência e reprodução. Por exemplo, a decisão de participar ou não dependeria da quantidade de caça com que você seria beneficiado adotando uma ou outra estratégia. A caça resultante do esforço coletivo e que seria dividida por todos os participantes dependeria da soma dos esforços de todos esses indivíduos. Se dentre eles houvesse uma grande proporção de não-contribuintes, a porção que caberia a cada um seria previsivelmente menor e talvez fosse mais aconselhável, do ponto de vista darwiniano, não participar e caçar sozinho ou empreender outras atividades.
A evolução de um sistema deste tipo pode ser simulada através de modelos matemáticos que tentam prever o lucro de cada uma das estratégias individuais bem como a evolução dessas estratégias de acordo com a previsão de lucro ao longo de vários ciclos (ex: várias caçadas). Vários modelos deste tipo mostraram recentemente que existe uma tendência para uma alternância cíclica entre as três estratégias consideradas. Na primeira fase do ciclo, os não-participantes são maioritários na população, mas se os contribuintes produzem um lucro líquido que excede o lucro obtido com outras atividades individuais, rapidamente os não-participantes se tornam participantes contribuintes. No entanto, esta situação é efémera pois a generalização do tipo contribuinte estimula o aparecimento de participantes não-contribuintes que procuram o benefício sem custos. Por fim, à medida que o sistema cooperativo colapsa, o benefício público diminui e os não-participantes, que conseguem garantir um lucro mínimo, de novo se tornam predominantes na população.
A novidade do trabalho de Fowler foi a introdução de um quarto tipo de estratégia individual, contribuintes que têm uma atitude punitiva altruísta tanto para com os não-contribuintes como para com os contribuintes que não são punitivos. Esta atitude punitiva é altruísta pois visa o bem comum e acarreta um custo determinado. O altruísta punitivo ignora no entanto os não-participantes pois estes não contribuem nem beneficiam do bem público. Simulando a evolução de uma população, agora com as quatro estratégias, Fowler verificou que a maioria da população tende sempre para uma maioria de altruístas punitivos. Portanto, uma estabilização do sistema cooperativo que não seria conseguido sem a atitude punitiva.
É claro que tudo isto é apresentado no mundo dos modelos matemáticos. Ainda nesse mundo, é da boa prática científica criticar os modelos pela sua adequação à realidade ou ao objetivo a que se propõem. No caso de Fowler, a crítica está embutida no artigo que tece várias considerações sobre variações às condições do modelo como por exemplo a capacidade dos indivíduos detectarem os não-contribuintes e a variação no grau de punição como dissuasora de atitudes não contributivas ou não punitivas. Tudo isto é considerado por Fowler para chegar à conclusão que uma estratégia pró-cooperação como o altruísmo punitivo tende a ter sucesso darwiniano porque simultaneamente possibilita obter mais benefícios que uma estratégia não-participante e mantém os não-contribuintes sob controle.
Fowler conclui que o modelo mostra como a punição altruísta se pode tornar dominante numa população em que exista um incentivo para a não-contribuição aliada a um incentivo de não-punição dos não-contribuintes. Este tipo de dinâmica pró-social tinha sido anteriormente demonstrado apenas para sistemas de indivíduos integrados em grupos sociais em vez de indivíduos não aparentados com contatos fortuitos. Finalmente, demonstra que a origem e a persistência de um sistema de cooperação generalizada se tornam possíveis quando indivíduos promovem a sua obrigatoriedade de forma voluntária, descentralizada e anónima, mesmo em populações grandes e numa variedade de circunstâncias.
Bom, mas isso é num modelo matemático! E na vida real, onde os indivíduos estão normalmente inseridos em grupos de parentesco ou socio-culturais, que se tornam eles próprios os atores nas interações sociais? Existem um sem número de outros modelos em teoria de jogos que tentam aproximar-se de outros tipos de situações mais realistas, em que os indivíduos não são anónimos e cujas interações têm efeito na sua reputação. No entanto, o modelo de Fowler de jogos de bens públicos é para mim interessante por que leva à reflexão sobre como sistemas de globalização e aleatorização de contatos individuais podem originar um sistema mais cooperativo do que o que vivemos hoje. Um exemplo é o sistema através do qual me comunico neste exato momento, o éter electrónico!
E agora que sabe como ele é em teoria, que tal ser um altruísta punitivo na vida real?