29 janeiro 2006

Sobre “Terras indígenas vs. parques desabitados” (Marcelo Leite, Folha de S. Paulo, 27/01/2006)

Encontrei neste artigo de jornalismo científico (ver também em http://cienciaemdia.zip.net/) deficiências comuns a muitos outros textos de jornalismo científico: leveza no tratamento da informação e parcialidade na exploração do contraditório.

O título parece-me inadequado. A comparação feita é entre quatro tipos de áreas e não apenas entre “terras indígenas vs. parques desabitados” A mensagem que transmite é dicotómica, i.e. contrapondo proteção da floresta e das comunidades indígenas. Seguindo esta linha, o autor do artigo jornalístico deixa entender que segue os autores do artigo científico ao concluir que a primeira opção seria preferível à segunda.

Mas, e apesar da conclusão ser baseada em “provas numéricas”, “aparentemente” os parques protegem 8,2 vezes mais contra desmatamento do que as terras indígenas! As terras indígenas parecem proteger “quase 2 vezes mais” do que os parques contra pontos de fogo! Mas a relevância de medir os pontos de fogo teria de ser aqui subsidiária em relação ao desmatamento pois o fogo é causa do desmatamento que já foi medido, não podendo ser analisado estatisticamente de forma independente. Qual então a relevância para o desmatamento de 2 vezes mais pontos de fogo? A questão fica em suspenso, a mensagem passada ao leitor é que o fogo é igual a desmatamento, o que é rigorosamente uma inverdade. Só que o leitor comum não sabe disso.


É apresentada então a explicação para as terras indígenas apresentarem um grau de proteção menor contra desmatamento, que reside na maior pressão exercida sobre terras indígenas situadas perto de zonas urbanas ou de rodovías. Aqui, o artigo teve o efeito positivo de me fazer pensar sobre quão diferente é a cultura indígena dos indios da Amazónia da cultura, predominantemente ocidental, que invade seus territórios. Como defende o antropólogo Eduardo Viveiros de Castro, os povos indígenas da Amazónia consideram-se parte integrante do seu habitat natural, não adotando uma dicotomia homem/meio natural. Talvez aí resida a explicação para as terras indígenas apresentarem um bom grau de preservação da floresta. Porque razão havia o índio de se auto-destruir?

Na minha opinião, relevante para preservação da Amazónia, é antever qual o resultado do nosso desejo de não destruir uma civilização em perigo por oposição à nossa incapacidade de não interagir com ela, necessariamente interferindo e alterando a cultura indígena. É sabido que a história da humanidade é também a de fenómenos de invasão e colonização cultural, levados a cabo por povos de civilizações tecnologicamente superiores sobre outros de poder tecnológico inferior. É perfeitamente natural que queiramos impedir o desaparecimento da diversidade civilizacional humana que ainda resta nestes tempos globalizantes! Mas será isto possível, a partir do momento em que os povos indígenas contatam com a nossa civilização? São imprevisíveis os efeitos deste contato, mas temo que os índios não resistam às comodidades que a nossa civilização tem para oferecer (cuidados básicos de saúde, por exemplo), o que vai necessariamento modificar a forma como as populações indígenas se perspectivam em relação ao seu mundo. E aí, talvez não mais seja possível às populações indígenas fazerem parte da floresta, pelo que destruí-la um pouco se tornaria possível!

Qual será o grau de aculturação dos povos indígenas e os seus efeitos sobre a floresta, nas terras indígenas localizadas perto das rodovias e de áreas urbanas na Amazónia? Desconheço o assunto, mas parece-me relevante perguntar se tendem a existir terras indígenas mais perto de rodovias do que seria de esperar tendo em conta a distribuição geográfica de todas as terras de populações indígenas da Amazónia, e se existe entre si alguma relação de causalidade.


Por tudo isto que é incerto, me parece que uma conclusão mais equilibrada a ser divulgada seria que talvez as terras indígenas sejam excelentes zonas tampão entre áreas sem algum grau de proteção e zonas completamente desabitadas, pelo que a expansão dos dois tipos de áreas devia ser fomentada.

Comentei o texto do artigo acima referido, não tendo lido o artigo científico original, apenas porque suscitou algum debate em roda de amigos, tendo notado que a incongruência da informação nem sempre é notada pelo leitor, por falta de tempo e disponibilidade mental. Parece-me que tal facto responsabiliza ainda mais o jornalista como autor-tradutor de informação científica. Cumpriria ao jornalista ser mais crítico sobre o que lê, ouve, pensa e escreve. Quando tal não acontece, resta-me esperar, como leitor, que seja o acaso, a falta de tempo, a obrigatoriedade de síntese, e não alguma batalha ideológica desinteressada, a causa da falta de qualidade de alguma da informação científica que circula na imprensa.



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