27 janeiro 2007

Que tal, o altruísta punitivo ?

Por que e com quem, somos ou não altruístas? Haverá forma de sermos humanamente mais altruístas e cooperativos? Pois é, grandes questões na tragicomédia que é a natureza humana, que alguns pesquisadores das ciências sociais tentam abordar através de modelos matemáticos, como o que divulgo a seguir.

A evolução e persistência do altruísmo e da cooperação no mundo natural tornam-se compreensíveis à luz das teorias de seleção de grupo do biólogo William Donald Hamilton (para conhecer Hamilton e suas teorias clique aqui), que postulam que a cooperação seria uma boa estratégia para elevar a probabilidade de sobrevivência e do sucesso reprodutivo em indivíduos aparentados. A teoria poderia ser estendida,
seguindo a mesma perspectiva darwiniana, para explicar a cooperação em grupos sociais humanos, entre indivíduos aparentados ou não.

Mas o que esperar de interações entre indivíduos não organizados em famílias ou outro tipo de grupos sociais? Esse é exatamente o tema do artigo que notei na PNAS de Maio de 2005. A pergunta específica do artigo é como a cooperação se pode originar e manter entre indivíduos não aparentados e com interações casuais que não contribuem para a reputação dos indivíduos envolvidos. O contexto conceitual do artigo é a teoria de jogos aplicada a bens públicos (se desconhece a teoria de jogos clique aqui).

O autor do artigo, James Fowler, propõe um modelo em que considera diferentes tipos comportamentais individuais, "numa população que tem a oportunidade de criar um bem público que é igualmente distribuído a todos os indivíduos na população". Um exemplo clássico, usado por Fowler, é a organização de batidas de caça cujos recursos serão posteriormente distribuídos pelos indivíduos da população. Imagine qual a sua atitude nessa empreitada coletiva! Com certeza, você decidiria ou não participar segundo a previsão de lucro [benefício (porção de caça) – custo (esforço dispendido na atividade)] obtido caçando em grupo por oposição a caçar sozinho. Optando por ser um participante, você poderia ainda escolher entre ser contribuinte ou não-contribuinte para o esforço coletivo que originaria o pecúlio a ser distribuído por todos os participantes. Assim, um não-contribuinte beneficiaria do esforço coletivo sem ter para ele contribuído. Já o não-participante não beneficiaria desse esforço porque empreenderia a sua própria batida de caça ou outras atividades.

Então, qual estratégia você escolheria? A resposta lógica é: depende. Dependeria de qual estratégia garantisse um lucro mais elevado, que garantisse uma maior aptidão [fitness] darwiniana na luta pela sobrevivência e reprodução. Por exemplo, a decisão de participar ou não dependeria da quantidade de caça com que você seria beneficiado adotando uma ou outra estratégia. A caça resultante do esforço coletivo e que seria dividida por todos os participantes dependeria da soma dos esforços de todos esses indivíduos. Se dentre eles houvesse uma grande proporção de não-contribuintes, a porção que caberia a cada um seria previsivelmente menor e talvez fosse mais aconselhável, do ponto de vista darwiniano, não participar e caçar sozinho ou empreender outras atividades.

A evolução de um sistema deste tipo pode ser simulada através de modelos matemáticos que tentam prever o lucro de cada uma das estratégias individuais bem como a evolução dessas estratégias de acordo com a previsão de lucro ao longo de vários ciclos (ex: várias caçadas). Vários modelos deste tipo mostraram recentemente que existe uma tendência para uma alternância cíclica entre as três estratégias consideradas. Na primeira fase do ciclo, os não-participantes são maioritários na população, mas se os contribuintes produzem um lucro líquido que excede o lucro obtido com outras atividades individuais, rapidamente os não-participantes se tornam participantes contribuintes. No entanto, esta situação é efémera pois a generalização do tipo contribuinte estimula o aparecimento de participantes não-contribuintes que procuram o benefício sem custos. Por fim, à medida que o sistema cooperativo colapsa, o benefício público diminui e os não-participantes, que conseguem garantir um lucro mínimo, de novo se tornam predominantes na população.

A novidade do trabalho de Fowler foi a introdução de um quarto tipo de estratégia individual, contribuintes que têm uma atitude punitiva altruísta tanto para com os não-contribuintes como para com os contribuintes que não são punitivos. Esta atitude punitiva é altruísta pois visa o bem comum e acarreta um custo determinado. O altruísta punitivo ignora no entanto os não-participantes pois estes não contribuem nem beneficiam do bem público. Simulando a evolução de uma população, agora com as quatro estratégias, Fowler verificou que a maioria da população tende sempre para uma maioria de altruístas punitivos. Portanto, uma estabilização do sistema cooperativo que não seria conseguido sem a atitude punitiva.

É claro que tudo isto é apresentado no mundo dos modelos matemáticos. Ainda nesse mundo, é da boa prática científica criticar os modelos pela sua adequação à realidade ou ao objetivo a que se propõem. No caso de Fowler, a crítica está embutida no artigo que tece várias considerações sobre variações às condições do modelo como por exemplo a capacidade dos indivíduos detectarem os não-contribuintes e a variação no grau de punição como dissuasora de atitudes não contributivas ou não punitivas. Tudo isto é considerado por Fowler para chegar à conclusão que uma estratégia pró-cooperação como o altruísmo punitivo tende a ter sucesso darwiniano porque simultaneamente possibilita obter mais benefícios que uma estratégia não-participante e mantém os não-contribuintes sob controle.

Fowler conclui que o modelo mostra como a punição altruísta se pode tornar dominante numa população em que exista um incentivo para a não-contribuição aliada a um incentivo de não-punição dos não-contribuintes. Este tipo de dinâmica pró-social tinha sido anteriormente demonstrado apenas para sistemas de indivíduos integrados em grupos sociais em vez de indivíduos não aparentados com contatos fortuitos. Finalmente, demonstra que a origem e a persistência de um sistema de cooperação generalizada se tornam possíveis quando indivíduos promovem a sua obrigatoriedade de forma voluntária, descentralizada e anónima, mesmo em populações grandes e numa variedade de circunstâncias.

Bom, mas isso é num modelo matemático! E na vida real, onde os indivíduos estão normalmente inseridos em grupos de parentesco ou socio-culturais, que se tornam eles próprios os atores nas interações sociais? Existem um sem número de outros modelos em teoria de jogos que tentam aproximar-se de outros tipos de situações mais realistas, em que os indivíduos não são anónimos e cujas interações têm efeito na sua reputação. No entanto, o modelo de Fowler de jogos de bens públicos é para mim interessante por que leva à reflexão sobre como sistemas de globalização e aleatorização de contatos individuais podem originar um sistema mais cooperativo do que o que vivemos hoje. Um exemplo é o sistema através do qual me comunico neste exato momento, o éter electrónico!

E agora que sabe como ele é em teoria, que tal ser um altruísta punitivo na vida real?


8 comentários:

Maria Guimarães disse...

eu continuo achando isso tudo muito bonito, mas não consigo imaginar um exemplo real. lanço aqui o desafio, espero que alguém ache um exemplo convincente!
sem esquecer que altruísmo necessariamente envolve um custo para o altruísta. senão não vale. repartir informação na blogosfera pode beneficiar aos outros, mas só conta como altruísmo se for custoso - se a pessoa der um tempo que lhe seria precioso para outra coisa, por exemplo.

João Alexandrino disse...

Não elaborei a minha reflexão porque o texto é um exercício de divulgação científica formal, e queria incitar à reflexão. A minha reflexão fica para outro texto, mas seria interessante se alguém encontrasse exemplos relevantes (não iguais, claro!) no contexto do modelo de Fowler.

Ah, existem custos de ser altruísta e de ser punitivo, incorporados no modelo de Fowler.

George Bezerra disse...

Caro João,

Respeito muito a opinião dos doutores em ciências sociais, mas eu não consigo me empolgar com as suas descobertas científicas. Para mim, toda a teoria de jogos e toda a investigação em altruísmo pode ser resumida por um exemplo de Platão, no qual ele imagina o ser humano mais injusto e canalha possível. Mas esse cara trabalhando sozinho consegue roubar $10, enquanto se ele se juntar com outro senhor tão injusto quanto ele eles juntos ganhariam $100. Nesse caso, fazendo um acordo todos sairiam ganhando. Entre os seres mais canalhas possíveis haveria moralidade e cooperação.

Resumindo, altruísmo da maneira como se concebe no popular não existe, e a cooperação surge do interesse próprio.

Mas o que me incomoda é esse senso comum dos sociólogos de que o ser humano é capaz de construir civilizações pela sua capacidade extraordinária de cooperar, e que os animais não podem construir grandes empresas porque são limitados nesse sentido. Quantas vezes ouço isso por aí. Aí me veio à mente, será que um ecossistema como uma floresta não é uma verdadeira civilização? Será que uma comunidade ecológica não se equivale a uma cidade em termos de complexidade e organização? Se sim, então onde está a cooperação, já que os nossos colegas não conseguiram encontrar?

Então pensemos por nós próprios e não usemos a teoria ou os modelos correntes. Uma fábrica é um exemplo clássico de cooperação. Um operário faz uma parte, passa pro outro, que junta com outra coisa, e assim vai, até o fim da linha de produção. A cooperação, havendo moralidade ou não, gera um produto, e a fábrica ganha vida. Se vc concorda comigo, vamos pensar na cidade agora. Uma fábrica produz cerveja, paga pra uma transportadora que leva pra distribuidora, que vende pras lojas e bares, e que chegam ao consumidor final. É um elo cooperativo tão sincronizado que o estoque do bar não vai acabar nunca, qualquer época do ano que vc for lá tomar uma.

Agora pense no ecossistema. Uma espécie se alimenta da outra, que se alimenta dessa e mais outras, e assim vai, formando cadeias inteiras de transferência de energia harmônicas e sincronizadas, que representam um benefício ao sistema como um todo, isto é, faz a grande empresa crescer, se organizar e expandir.

Nosso amigo sociólogo vai enxergar a competição entre esses animais, e ele nunca vai entender que a maneira que ele enxerga a cooperação, isto é, a cooperação que ele busca no seu computador não é o processo fundamental que rege a civilização humana. Não estou dizendo que o que ele procura não exista, mas que o processo quando olhado num nível macro possui uma outra conotação, algo palpável e evidente, e que a teoria de jogos nunca poderá nos mostrar.

Me empolguei. Grande abraço.

João Alexandrino disse...

George,
você se refere a sistemas em que os indivíduos estão inseridos num sistema em cadeia ou em rede, e existe ou uma hierarquia (fábrica ou cidade) ou regras de funcionamento estabelecidas, e que têm de ser seguidas para os sistemas funcionarem! Acho que você se ilude quando fala de harmonia, qualquer (eco)sistema vive uma série de equilíbrios dinâmicos entre o caos e ordem.

Agora, o artigo que divulguei faz perguntas sobre sistemas de indivíduos livres, não inseridos em sistemas obrigatórios ou pré-estabelecidos, e que podem escolher cooperar ou não. Perante a diversidade de escolhas dos indivíduos, o autor faz a pergunta: como poderá surgir a cooperação neste sistema, e como ela pode ser mantida? Se você pensar bem, o artigo remete para várias realidades bem palpáveis e evidentes, quiçá representadas em teatros de vida bem perto de nós.

George Bezerra disse...

Fala João, bacana que vc não concorda comigo. É assim que as discussões tomam lugar. Vou tentar responder de forma amigável, mas confesso que minha mão é pesada e já peço desculpas antecipadas.

O que vc sabe de ecossistema, ou de uma rede neural, ou de uma sociedade, ou do sistema imunológico ou de uma rede metabólica/protéica/genética pra dizer que qualquer um desses sistemas vive entre a ordem e o caos?

Ninguém sabe onde fica a "ordem e o caos" (aliás, deve se um lugar bem longe mesmo), ninguém tem a menor idéia do que isso significa. Aliás, se vc for atrás da história de onde surgiu esse termo e de como ele se tornou popular, vai ver que o que se fala por aí não tem base nenhuma.

Portanto, se usa genericamente essa idéia de ordem e caos pra dar uma explicação que não explica nada, exatamente como você fez. Se vc se sente satisfeito com uma resposta que não explica nada, bom pra vc, mas eu não.

Portanto aprensentei pra vc um modelo, uma coisa pra vc pensar, e vc que tem fé nos jargões da área e nos pseudo-especialistas de status prefere não pensar e afirmar que eu estou errado porque a proposta não bate com a sua certeza (que vem da fé, claro, e não da conclusão por si próprio) no "entre o caos e ordem".

Agora me responda, quem será mesmo que está se iludindo nessa história?

Bom, eu falei que minha mão era pesada.

Minhas considerações,

George.

João Alexandrino disse...

Me desculpe, mas não consegui vislumbrar qualquer modelo no que escreveu? Como funciona? Pode ser quantificado? Ou o seu, é apenas aquele modelo negacionista que afirma que não podemos conhecer o mundo complexo.

O autor do artigo que divulguei apresenta um modelo matemático que gera previsões sobre um sistema. Pode ser pouco realista, como todos os modelos são, mas está lá para ser avaliado, criticado, discutido e melhorado com base em novas observações. É assim que progride o conhecimento humano.

Qualquer sistema, ou mesmo a sua vida, existem ao sabor de circunstâncias dos ambientes físico e/ou biológico nos quais existem, que são dinâmicos e podem mudar a cada momento. Essa mudança produz desequilíbrios no sistema, que tenderá depois para um novo equilíbrio. Esta é uma característica de genes em genomas, neurónios em rede, indivíduos em populações, populações em espécies, comunidades em ecossistemas, etc. Não sei qual a sua formação, mas se você estudar qualquer sistema bem a fundo, verá que ele é complexo apesar de regido por mecanismos que você poderá não conseguir traduzir numa única fórmula matemática, e existe em permanente equilíbrio/desequilíbrio. Não é preciso ir longe para ver evidências disso. Se não fosse assim, o mundo permaneceria sempre igual, nada mudaria!

O meu algum conhecimento sobre sistemas dinâmicos vem de experiência com estudos ecológicos de distribuições geográficas de organismos. E estudos de genética e evolução. E um interesse mais geral pelo dinamismo dos conceitos.

Por exemplo, você já pensou nas alterações clmáticas em curso (vulgo aquecimento global) e no seu impacto na ocorrência de muitos organismos. Muitos se extinguirão em alguns locais, outros poderão se extinguir completamente. Você chamaria a isto equilíbrio ou desequilíbrio no sistema. E às extinções em massa que ocorreram no passado (ex: Câmbrico)?

É claro que tudo depende da escala a que você observa qualquer fenómeno. Se você observar tudo na escala do universo, então tudo o que se passa aqui neste pequeno planeta é irrelevante. Os mecanismos que caracterizam um sistema vão variando de acordo com a escala de observação. Em relação ao que se pode conhecer, quanto maior a escala, menor é o detalhe, quanto menor a escala, menor é a generalidade.

Caos e ordem são conceitos humanos para descrever o dinamismo dos sistemas que observamos. Nesse sentido, não lhe atribuo valoração alguma, positiva ou negativa. São apenas fases distintas desse processo a que podemos chamar muito genericamente de evolução (não necessarianente a de Darwin).

A minha fé não vai além da busca da consciência da consciência humana (a repetição é propositada).

Caos e ordem não são jargão,fazem parte do léxico comum, é só consultar o dicionário.

Quanto à sua mão, não dê demasiada importância ao seu peso!

George Bezerra disse...

Bom, de alguma forma que não consigo explicar gostei da sua resposta.

Acredito que é possível conhecer sim como funciona um sistema complexo (ou pra ser mais franco, a vida). O que me incomoda é as pessoas em geral consideram o complexo complexo demais, e isso às vezes dificulta a inovação e a compreensão.

Por exemplo, no estudo da cognição um novo neurocientista (recém iniciado na pesquisa) vai se instruir por meio das teorias e publicações que foram propostas antes. Ele propõe as dele e assim vai, um partindo do que o outro fez e toda aquela história do avanço conhecimento científico.

Mas chega um ponto em que as coisas não funcionam mais. O modelo não explica, as coisas se tornam muito complexas, a cadeia se torna longa demais. Chega a hora de questionar os fundamentos, porque é provavel que essa parada toda esteja indo na direção errada. É por isso que a neurociência não vai pra frente no entendimento do cérebro. Eles não conseguem abandonar o fundamento, eles são orgulhosos demais, são muito dependentes da estrutura que eles mesmo montaram.

Quero dizer que é preciso propor uma nova visão básica, uma nova maneira, algo original que não parte imediatamente do que tem sido antes. É isso que constitui a inovação científica, mais especificamente a mudança de paradigma. Criar uma nova perspectiva que simplifica o que era considerado complexo. (claro que pra isso, toda a longa cadeia do conhecimento é necessária).

O que acontece é que poucas pessoas têm a coragem de questionar, e simplesmente aceitam o que o especialista disse. Mas tem um ponto em que questionar é mais importante do que seguir o especialista, pq o nosso especialista pode estar errado.

Então eu olho para o especialista e vejo que o embasamento para a afirmação que ele faz está diluído numa longa cadeia acidentada de conhecimento. Algumas pessoas vão se intimidar com o que ele fala, mas se vc questionar vai ver que toda a autoridade do nosso cientista tem um fundamento tão sólido quanto um sorvete que derreteu.

Abraços.

Anónimo disse...

Caro George,

Em primeiro lugar gostaria de elogiar sua diplomacia e também sua escrita.
Primo pelo cuidado ortográfico e pela beleza da literatura que quando consumida de forma moderada desenvolve a capacidade de expressão. Claro que não deixa de ser perigosa, pois ao mesmo tempo desenvolve a tal da dialética e pode tomar tanto o tempo do indivíduo e condicioná-lo a tal ponto a absorver as idéias alheias que não lhe sobra tempo para refletir e tirar suas próprias conclusões. Pior ainda, o cara lê, lê, lê e termina por ficar incapaz de abstrair toda essa informação para pensar nas conclusões mais básicas e instintivas que a vida pode apresentar.
Então espero francamente, que vocês esteja dosando de forma ponderada seu empenhe entre um (ler) e outro (refletir) e que no meio tempo do seu trabalho analisando a vida, você possa estar efetivamente vivendo, de forma simples e feliz!
Obs: Schopenhauer não é só um pretexto pra ter algo do que falar...