O menino Darwin
O escritório onde Darwin trabalhava tinha equipamentos modestos se comparados à parafernália de um laboratório atual. Microscópios de cobre, lupas, tubos de ensaio, livros. Mas a ferramenta mais importante não aparece na foto: a curiosidade.
Entre aulas e leituras, tenho a impressão de ter convivido longamente com Charles Darwin, e de quase conhecê-lo. Claro, o meu Darwin é com certeza diferente do das outras pessoas. É dele que falo aqui. Do menino de 10 anos que contava flores no jardim, como conto aqui, do jovem que se deslumbrou na viagem à América do Sul e do homem que se manteve maravilhado pela vida afora.
Para mim, é da atenção que ele prestou a tudo o que era da natureza que vêm suas grandes contribuições à ciência. Como, senão, explicar a diversidade dos temas que abarcou? O livro Darwin's Garden - Down House and the Origin of Species, por Michael Boulter (que deve sair no Brasil ainda este ano) traz belos relatos. Conta dos besouros que Darwin coletava, da revisão taxonômica de cracas que empreendeu como maneira de dominar a variabilidade entre espécies, dos pombos que criava e nos quais admirava as fantásticas plumagens, das minhocas de seu jardim cuja população estimou, assim como seu efeito sobre a terra remexida. Nesse livro aprendi também que ele deu atenção às plantas carnívoras do gênero Drosera, sobre as quais inferiu (corretamente) que capturavam insetos para suprir uma deficiência de nitrogênio no solo. E foi também pioneiro em estudar a psicologia do ponto de vista do desenvolvimento, ao observar atentamente o crescimento de um de seus filhos. Tudo isso detalhado com minúcias e publicado (veja aqui).
Essa curiosidade e a propensão a maravilhar-se está nas crianças - Darwin sabia e envolvia os filhos pequenos em seus experimentos, em brincadeiras como espalhá-las pelo jardim para desvendar os voos das abelhas. Se mais pessoas mantivessem a chama acesa, talvez a história da ciência fosse mais coalhada de lampejos.
Aproveito o ensejo para recomendar o novo livro do Marcelo Leite: Darwin, para a coleção Folha Explica. O livro começa com a polêmica atual entre criacionismo e evolução, na qual ambas disciplinas disputam a cadeira de ciência. Controvérsia que, desconfio, causaria desgosto ao velho Charles. Marcelo Leite parece concordar, mais adiante escreve: "Seria um despropósito, no entanto, interpretar sua obra e seu pensamento como peças de propaganda ateísta, como até hoje - 150 anos depois de Origem das espécies - alguns fundamentalistas ainda a avaliam. Para sustentar sua interpretação da natureza, Darwin poderia tanto acreditar como não acreditar em Deus, pois a rigor essa questão é irrelevante para seu pensamento".
Marcelo Leite foi bem sucedido no desafio de resumir a vida e da obra de Darwin no pouco espaço que a coleção exige. Não posso deixar, porém, de gritar com o espinho que ele deixa no final, quando chega ao que considera maus usos das ideias evolucionistas. "O caráter um tanto tosco de iniciativas como a sociobiologia dos anos 1970 [...] de fato não autoriza entusiasmo para com essa perspectiva. O que ele chama de tentativas canhestras - me refiro unicamente ao marco fundador da sociobiologia, o livro de E.O. Wilson de 1975 - não tiveram nada de tosco. Wilson fez naquele momento a primeira demonstração de sua capacidade ímpar (até darwiniana) de reunir ideias e sintetizá-las num corpo teórico coerente. Sim, a organização social dos animais é resultado de uma imensa conjunção de fatores biológicos que incluem ecologia, fisiologia, genética de populações e mais.
Não vejo bem a discordância entre o que Wilson discutiu em seu livro (na pequena fração que dedica às pessoas) e o trabalho de Peter Singer que Marcelo Leite sintetiza ao fim do livro: existe natureza humana, saber mais sobre ela ajuda a lidar com ela, e ela não justifica ações condenáveis por serem naturais.
Outra dica: a revista Pesquisa de março traz artigos por quatro pesquisadores que comentam a influência das ideias de Darwin em suas respectivas áreas de pesquisa. São eles Mario de Pinna, do Museu de Zoologia da USP, Cesar Ades, da Psicologia da USP, Alysson Muotri, da Universidade da Califórnia em San Diego e Ana Carolina Regner, da Filosofia da Unisinos.
Tirei a imagem daqui, a fotografia é da exposição Darwin em Chicago, a mesma que esteve no Brasil e sobre a qual escrevi na revista Pesquisa.
Este texto é parte da discussão de março no roda de ciência.
Comentários, por favor, aqui.