30 março 2006

Impressões da Islândia

Para quem conhece aquele pedaço do mundo, a piada, em inglês, é sempre a mesma: "Iceland and Greenland got their names inverted. Iceland is green and Greenland is only ice"...
Ouvi isso de muita gente antes de ir à Islândia. Tenho que admitir que no inverno a Islândia não é muito verde mas é simplesmente fascinante. Tente imaginar um lugar onde a temperatura quase sempre está entre - 10 e 15 graus centígrados, cercado de um mar azulíssimo e onde há lagoas geotérmicas suficientes para gerar constantes nuvens de vapor que pairam sobre uma paisagem lunar. Imagine essa ilha toda feita de relevos vulcânicos (muitos ativos) e campos intermináveis de lava, na maior parte negra. No inverno os campos de lava ficam irregularmente cobertos de neve dando a impressão de uma tapeçaria muito intrincada, de branco e preto.

No verão, depois da neve derretida, os campos se cobrem de gramas muito verdes onde pastam aqueles cavalos islandeses, raça que quase não mudou desde o tempo dos Vikings. São, ao contrário do que se imagina para um cavalo que carregava os guerreiros Vikings, pequenos e fortinhos, com a garupa larga e a crina densa e um pouco espetada. Além disso têm um quinto jeito de andar (como era? trote, galope, corrida, caminhada e esse quinto que consiste de um galope atrás e um floreio com as patas da frente - só vendo pra crer. Notem que há 80.000 cavalos desses para os 300.000 habitantes da Islândia (o nascimento deste último noticiado nos jornais recentemente!). Leia mais sobre os cavalos
http://www.imh.org/imh/bw/iceland.html.

Reykjavik (pronuncia-se rekavik) abriga a maior parte da população do país e fica na ponta de um dos lados da baía de Reykjanes. Tem vista pras montanhas do outro lado da meia-lua de terra que encompassa um bocado das águas geladas do Atlântico Norte. A economia se apoia principalmente no mercado pesqueiro, na criação de ovelhas e, mais recentemente, no turismo. O governo islandês subsidia e protege a todo custo a pouca agricultura do país, toda feita em estufas que podem ser vistas - jóias luminosas e esverdeadas - ao longo das estradas estreitas que cruzam aquelas vastas terras. Um pouco desproporcionais em relação às tais estradas são os super jipes, os veículos mais apropriados para explorar o terreno acidentado da ilha.

Foi num desses jipes que fomos visitar a terceira maior geleira do país,
Hofsjökull (925 km²). Em direção `a geleira passamos por Geyser, cujo nome é atualmente usado para referência ao fenômeno, e por uma grande cachoeira de bordas salpicadas de neves finas, fruto dos espirros congelados em pleno ar. Geyser é hoje inativo, mas assistimos Strokur, um outro geiser bem próximo, numa erupção de 20 metros.

Era fácil, segundo nosso guia Haukur (que quer dizer falcão em islandês), saber se tínhamos chegado na geleira "quando você não enxergar mais nada preto (rochas) é porque chegamos". Não sei exatamente o que eu esperava de uma geleira; um planalto de gelo, tipo um iceberg achatado? Só não esperava aquela imensidão branca, sem contornos, sem detalhes. O branco mais branco que já vi. O céu sobre a geleira também é branco - encoberto e recebendo luz que se reflete no gelo abaixo - de forma que não há divisão entre céu e terra, o horizonte não existe. E tirando as trilhas que nosso jipe havia deixado na neve, meus olhos não conseguiam se fixar em nada. Procuravam cansados um ponto focal, algo que desse noção de profundidade, distância. Mas só o que eu via eram aquelas pequenas bolinhas de luz dentro dos meus próprios olhos, quase uma vertigem. Incrível.

Na estrada de volta paramos perto de um riacho (toda água de lá é potável e puríssima) para que Haukur inflasse de novo os pneus do jipe que precisam ser quase que completamente esvaziados para aumentar a tração na neve. Não muito longe de onde paramos havia um barracão de alumínio daqueles feitos pelo exército americano. [Inclusive, o exército americano se retira da Islândia esse ano - o país fica sem corpo militar algum]. Têm forma de um cano cortado no meio longitudinalmente com a superfície cortada para baixo, de modo que o teto é redondo, a metade intacta do cano. Fui olhar de perto e percebi umas caminhas lá dentro, uma mesa, uma vela meio derretida, um mapa da Islândia aberto, umas cadeiras velhas. A porta destracada me recebeu. Podia ver a paisagem completamente deserta pelas janelinhas quadradas de vidro. Num cantinho, dentro de uma espécie de caixa presa à parede-teto circular, estava um caderno de capa dura azul turquesa e uma caneta! Qual não foi minha surpresa ao ver que dentro dele haviam depoimentos de dezenas de passantes, principalmente turistas. O mais antigo datado de meados dos anos 80. Italiano, inglês, japonês, e línguas que não reconheço. Deixei alí minhas 3 linhas abasbacadas em português, minha pequena marca naquele mundão.

Na cidade participamos da vida social de Reykjavik que borbulha com restaurantes, bares e mil lojas interessantíssimas, principalmente de roupas e jóias, estilo europeu. As joalherias mostram peças criativas que levam pedaços de lava e outras rochas vulcânicas. A bebida local, Brevenin, é igualmente interessante. Um tipo de schnapps, com sabor de sementes de cominho (ou carraway, como é que traduz isso mesmo?), cujo nome significa morte negra! A cerveja, acredite ou não, era proibida no país até 1987, com o intuito de evitar que as pessoas bebessem grandes volumes de álcool, o que seria facilitado pela leveza da bebida. Brevenin não é leve mas nem por isso influencia o volume de álcool consumido nos bares. Principalmente não durante o auge do inverno quando o sol nasce às 11 e já desaparece à 1 da tarde. O mais doloroso da vida urbana são os preços exorbitantes devido ao alto volume de importações do país. O Kroner, moeda islandesa, parece inócuo quando se lê a conversão de 67 para cada 1 dólar americano; mas na hora de pagar um jantar de 8000 Kroner num simples restaurante local, se vê que é quase impossível comer por menos de 100 dólares por pessoa.

No último dia visitamos a lagoa azul, que fica no meio do caminho entre Reykjavik e Keflavik, onde está o aeroporto internacional. Ela se espalha, muito grande, por bacias formadas pelas rochas negras, no meio de um campo de lava com horizontes infinitos. As águas dessa lagoa são muito salgadas e esbranquiçadas devido a um tipo de argila e aos sais minerais. Dependendo da luz toma tonalidade azulada, linda. Perto da lagoa, há cavernas escavadas na rocha, com portas de madeira pesadas, que fazem as vezes de sauna. Ali, no ar gélido do mundo exterior e em meio aos vapores, tomamos sol e ficamos de molho antes de pegar o avião de volta aos Estados Unidos.

Nunca achei que fosse conhecer a Islândia, mas agora só penso em voltar para ver o país no verão, curtir o sol da meia-noite que faz de Reyjkavik o equivalente a uma cidade brasileira durante o Carnaval. Voltar também para perseguir a aurora boreal e explorar a parte norte do país, com seus vastos fiordes e lindos campos. Voltar para rever as pessoas que conhecemos e deixamos pra trás com uma saudadezinha gostosa. O joalheiro bêbado que fez nossas alianças (uma muito grande, outra muito justa!), a moça do bar Dillon, que nos traduziu a certidão de casamento, o guia Haukur que desceu a geleira numa velocidade incrível tocando U2 no rádio do jipe. Tudo dá saudade, até a morte negra, depois de uma boa sopa de cordeiro islandês!

23 março 2006

Abortos - e nascimentos - geram problemas éticos

Aborto sempre foi assunto controverso, carregado de questões éticas, morais, religiosas e principalmente emocionais. Digo principalmente emocionais pois ética, moral e religião são em parte frutos da racionalização, ou organização prática, de uma série de emoções humanas - sistemas de regras que, por ângulos diversos, moldam a convivência em sociedade. É fácil, mesmo que subjetivamente, entender o impacto que um aborto tem na mulher, sendo ela a portadora do feto, e portanto responsável direta pela decisão, sofredora da dor física, colecionadora da ferida emocional e do julgamento alheio. Presenciei ao longo dos últimos 15 anos, na capacidade de amiga, confidente, e até fiadora, a saga de mulheres que abortaram em várias situações e por razões variadas. Algumas resolvendo um erro de planejamento, falta de atenção à contracepção, em situações em que não se sentiam prontas para a maternidade: muito jovens, ainda estudando, sem relacionamento estável, o parceiro errado, sem dinheiro, sem apoio, sem vontade, com medo, ou a soma de todas as anteriores. Outras, perdendo espontaneamente, com o presságio de um sangramento leve, um filho planejado e muito esperado.

As implicações do aborto, da escolha que leva a ele, da política que o envolve em diferentes países, dos complicados aspectos culturais e religiosos que estão a ele ligados, são muitas. Poderia passar dias escrevendo sobre cada elemento e até entrar nos detalhes das versões mais "especializadas" como o aborto seletivo. O assunto já foi até discutido num comentário de Maria Guimarães, nesse mesmo blogue, sobre o aborto de fetos do sexo feminino na Índia. Recentemente aprendi que existe também aborto seletivo para diminuir o número de fetos de gestações múltiplas - quem tem quadrigêmeos, por exemplo, pode abortar um ou dois dos fetos para manejar o número de bebês. Tudo muito prático e muito complicado ao mesmo tempo. Me sinto tentada a elaborar uma sequela à discussão começada por Maria sobre a condição social na Índia, sobre os efeitos da pobreza e da cultura dos dotes no sistema familiar daquele país tão interessante e que visitamos juntas pela primeira vez, anos atrás. Também me sinto inclinada a investigar a mente e as condições sociais das mães e pais que, não ligados a dilemas culturais e financeiros como os indianos, decidem abortar um feto dentre trigêmeos, por exemplo. Mas esses são assuntos dos mais complexos e que merecem artigo próprio, pesquisado, e não essa avalanche de pensamentos frouxos que vou colocando na tela.

Não resisto, no entanto a comentar a "redução seletiva". Essa técnica foi originalmente criada como procedimento médico que visa reduzir os riscos de vida da mãe e dos bebês em caso de gestações multíplas extremas onde a mulher carrega 6, 7 ou mais fetos. Atualmente, no entanto, a redução seletiva vem sido usada em casos longe de extremos, como na gestação de gêmeos. Tornou-se uma opção da mãe, da família, cada vez mais comum. O uso da redução seletiva vem também aumentando nos casos de gestações múltiplas de mais de 3 fetos que resultam das técnicas de fertilização artificial, tão em alta atualmente. Parte do procedimento da fertilização in vitro, por exemplo, inclui implante de múltiplos embriões no útero da paciente para aumentar a chance de sucesso da gravidez. É interessante notar também que muitos dos textos que li sobre aborto seletivo estão em periódicos legais e não médicos, o que mostra o âmbito social e público da questão. (Olhem, como exemplo, esse artigo publicado em um periódico chamado Duke Journal of Gender and Law:
http://www.law.duke.edu/shell/cite.pl?7+Duke+J.+Gender+L.+&+Pol'y+29).

A própria popularidade da fertilização in vitro e do desenvolvimento astronômico da medicina reprodutiva é interessante. Em parte porque mostra a trajetória da mulher e do núcleo familiar em certos grupos socioeconômicos e culturais: a carreira com peso cada vez maior e os filhos chegando cada vez mais tarde. Com isso aumenta muito o número de mulheres de idade relativamente avançada (digamos de mais de 35 anos, uma faixa etária estatisticamente importante em reprodução) que desejam ter filhos e enfrentam todo tipo de dificuldades. E usando isso como gancho, penso numa tragédia que acompanhei recentemente e que mostra o aborto por um ângulo ainda diverso.

Uma mulher de 39 anos, que chamarei aqui de Bete, conseguiu engravidar depois de quase um ano de tentativas falidas incluindo um aborto espontâneo nos primeiros 2 meses de uma gravidez prévia. Bete não contou aos seus amigos ou parentes sobre a gravidez até depois do quarto mês, para garantir que o bebê fosse sobreviver aqueles meses críticos. Bete é uma mulher educada, com uma carreira, e num relacionamento estável e saudável onde ambos querem o bebê. O anúncio, depois daquele quarto mês e vários exames que indicavam que o bebê estava bem, foi recebido com muita comemoração por todos. Bete e seu marido conseguiram sentir, pela primeira vez, o medo de serem pais de primeira viagem e não o medo de perderem o filho esperado. No quinto mês houve algum sangramento e exames adicionais revelaram pouco fluido amniótico, um mau sinal. O exame ultrasonográfico acabou por revelar um feto com inúmeras anormalidades sérias incluindo malformações cranianas e cerebrais, joelhos fundidos, uma bexiga urinária vestigial, desvios na coluna vertebral e malformações cardíacas graves.

Os médicos disseram a Bete que o bebê provavelmente morreria ao nascer e que a melhor solução era o aborto. Sim, aborto que sob a luz da medicina moderna, salva a mãe, o pai, a família e o bebê de certa parte da tragédia. Salva a mãe do choque de ver, na mesa de parto, algo bem diferente do tão esperado bebê perfeito " com 10 dedos nas mãos e 10 nos pés". Salva o bebê de uma morte por insuficiência cardíaca, deficiência cerebral incompatível com os primeiros momentos de vida fora do ambiente protegido da barriga da mãe. Salva a família da expectativa seguida de monstruosa decepção. Por outro lado ninguém é salvo, principalmente não a mãe, de ter que tomar a decisão do aborto, ou melhor de aceitá-lo a contragosto, e do luto que resulta.

Bete "decidiu abortar", de acordo com os conselhos médicos, e teve que marcar o procedimento de 2 dias de duração, para dalí há uma semana. É quase melodramático demais dizer que Bete foi para a casa com sua grande barriga de grávida sabendo que aquele bebê estaria morto em poucos dias. Ela aceitou beber 3 copos de vinho num jantar, cada gole com tristeza, e com aquela leve embriaguez de quem não colocava álcool na boca há 5 meses. Se eu estivesse criando uma personagem de ficção, escolheria outros eventos e outras palavras, em prol da boa literatura. Em romance algum me permitiria, fosse escritora, colocar uma Bete como essa, que chorava ininterruptamente antes e depois do aborto feito. Que no dia após a procedimento final acordou com os seios duplicados de tamanho, em plena lactação, porque seu corpo "pensava" que tinha dado à luz. E deu, mas não como esperado.

Essa história foi dura de assistir, em parte porque sou uma mulher de trinta e poucos anos e portanto consigo identificar-me com Bete; em parte porque foi o primeiro aborto que acompanhei onde a decisão era da mulher, do casal nesse caso, e não era. Uma decisão que carrega implicações, dores e alívios diferentes dos que estava habituada a considerar. O aborto talvez trouxesse algum alívio, ou algum senso mais profundo de fracasso, ou alguma culpa? Como saber? Mas o que me impulsionou nessa linha de pensamento, nesse questionamento, nessa contemplação da natureza humana e de seus problemas biológicos foi um artigo que li pouquíssimo depois de ter acompanhado de perto o caso da Bete. O artigo chama-se "A wrongful birth?" e saiu na revista do New York Times em 12 de março desse ano, por Elizabeth Weil. Trata de asssunto quase oposto ao que narrei acima.
http://www.nytimes.com/2006/03/12/magazine/312wrongful.1.html?ex=1143262800&en=eb222e9d274d1c0a&ei=5070).

Nesse artigo Weil conta o caso da Nova Iorquina Donna Branca para discutir as implicações legais do chamado "wrongful birth". Como traduzir esse termo legal? Nascimento errôneo? Tão desconfortável quanto o termo é que ele implica. Donna engravidou aos 31 anos e seu caso é semelhante ao de Bete mas com a diferença fundamental de que o bebê em questão tem hoje 6 anos. Não foi abortado, portanto, mas vítima do tal de nascimento errôneo. Donna era mais jovem que Bete e os médicos não estavam tão preocupados com complicações. Ela passou os primeiros 6 meses tomando os cuidados pré-natais que lhe foram indicados por seu obstreta e acreditava, também por conta da opinião especializada do obstreta, que tudo estava bem com seu filho. A gravidez havia sido um pouco conturbada, com sangramentos no primeiro trimestre e pouco ganho de peso, mas só aos 6 meses e meio é que Donna e seu marido descobriram que o filho tinha Síndrome de Hirschhorn. A descoberta foi acidental quando, depois de um sangramento severo enquanto passava o dia em outro estado, Donna acabou no pronto-socorro de um hospital em Nova Jersey. Em consulta com o ginecologista de plantão descobriram que os exames pré-natais de Donna, incompletos ou negligenciados pelo seu médico, deixaram de mostrar um feto bem menor que o normal e com anomalias cromossômicas (veja artigo original para detalhes).

Nessas circunstâncias, como no caso de Bete, o aborto é aconselhado, entretanto a gestação de 28 semanas de Donna estava avançada demais e ela não tinha mais essa opção (as leis do estado de Nova York estipulam um limite de 24 semanas para aborto). O bebê nasceu prematuro, muito pequeno, desfigurado e com todas as anomalias ditadas pela síndrome que portava tais como retardo mental grave, e problemas respiratórios e digestivos severos. O filho de hoje 6 anos possui capacidade mental de um bebê de 6 meses e passou grande parte dos seus poucos anos de vida em instituições especializadas, sendo alimentado por meio de tubos e monitorado todo o tempo por enfermeiras. Donna e o marido processaram seus médicos em 2004, por "medical malpractice". O dinheiro que ganharam com o processo hoje ajuda a pagar as despesas médicas altíssimas que tiveram nos últimos 6 anos.

Essa categoria de processo por negligência médica foi estreada em 1966 nos Estados Unidos com o caso de uma mulher que contraiu rubéola durante a gravidez e que recebeu garantia de seu médico de que o bebê não seria afetado. O bebê nasceu com graves deficiências de audição, visão e fala. As cortes negaram o processo e enfatizaram, segundo Weil, que várias pessoas famosas e influentes portavam defeitos físicos e que o nascimento de um ser humano não devia ser comparado com a criação de gado premiado. Em 1978, cinco anos depois de estabelecido o direito da mulher de abortar uma criança com defeitos físicos ou problemas mentais, o caso de uma mulher de 35 anos ("mãe geriátrica" em terminologia médica) que deu à luz uma criança com síndrome de Down foi levado à justiça. Ela alegou que os médicos não haviam-lhe alertado ao risco mais alto de gerar uma criança defeituosa, dada sua "idade avançada". As cortes nesse caso decidiram em favor da família, por conta do preço mais alto de criar uma criança deficiente.

Ao ler sobre esses casos não consigo decidir, nem por aproximação, o que acho certo e o que acho errado. Não consigo, de maneira imparcial, separar o justo do injusto. Na verdade não sei se essa questão é passível de tal julgamento. Numa análise simplística, parece óbvio que dar a luz a uma criança com defeitos como os descritos no caso de Donna seja um mal negócio para todos os envolvidos. O aborto, nesse caso, seria solução justa, correta. Parece, num outro extremo do espectro, que abortar uma criança por ela não ser do sexo desejado, ou abortar um dos fetos de um par de gêmeos para planejar o número de filhos, seja injusto ou errado. Mas as decisões são complexas e não, de maneira nenhuma, independentes do indivíduo e de cada família e sua realidade social e cultural.

Considero vários dilemas: Até que ponto temos o direito de escolher as características dos nossos filhos? Será que em algum futuro, mesmo que longínquo, os pais terão o direito de abortar os bebês que não se enquadrem dentro da sua expectativa? Levar a termo os bebês com a cor de olhos e cabelos que lhes parecer melhor? Selecionar, através dos testes genéticos pré-natais cada vez mais refinados, crianças com certas características de personalidade, certo QI? Considerar esse desfecho soa quase como uma piada de mau gosto, ficção científica, mas a verdade é que as fronteiras são tênues no que diz respeito a decisões que culminam no nascimento ou na morte de um ser humano. Tempere as questões do que é certo e errado com os aspectos legais: atualmente, nos Estados Unidos, os médicos tendem a aconselhar o aborto ao primeiro sinal de que possa haver algum problema com o feto, por medo de serem processados.


Por outro lado, quais os direitos discutidos aqui? Os dos pais, adultos, já parte desse mundo, ou os do bebê, ainda nem nascido? E de que "bebê" falamos? Um genérico ou aquela uma vida em particular, em jogo em cada decisão? A polêmica é grande sem nem precisar entrar na questão de se existe ou não alma, ou do possível momento em que a alma, caso exista, passe a habitar aquele grupo de células que compõe o feto.

Gostaria de deixar o leitor com algumas idéas e considerações que julgo importantes porque profundamentes ligadas à natureza humana. Como, se tentarmos responder honestamente, definiremos o que é certo para o ser humano? Que traço de comportamento nos identifica como raça? O direito de escolher? A capacidade de analisar emoções que moldam nossas decisões? A habilidade de prever consequências? E como resolveremos os problemas éticos dos nascimentos e dos abortos? Talvez pensar sobre o assunto seja um bom começo, mas talvez não haja, pelo mundo ser tão vasto e coberto de tão diversos seres humanos, uma solução que agrade a todos. Acredito que a vida seja preciosa, mas de que vida estamos falando?

22 março 2006

Maior referência da botânica brasileira se moderniza em seu centenário

Notícia minha na revista ComCiência:

Cem anos após sua publicação, está disponível na internet o mais completo catálogo botânico do Brasil. A Flora brasiliensis é resultado da viagem do alemão Carl Friedrich Philipp von Martius pelo brasil, entre 1817 e 1820. Um consórcio de instituições, encabeçado pelo Centro de Referência em Informação Ambiental (Cria), em Campinas, é responsável pela
Flora Brasiliensis On-line.

(ver notícia completa
aqui)

20 março 2006

Novas análises chacoalham árvore genealógica dos anfíbios

Notícia minha na revista ComCiência, chamada abaixo:

A classificação dos anfíbios do mundo todo acaba de passar por uma grande reforma. A nova proposta está em monografia recém publicada pelo Museu Americano de História Natural em Nova Iorque, resultado do trabalho de uma equipe internacional de pesquisadores.

19 março 2006

Os genes podem ser egoistas?

A Oxford University Press acaba de lançar uma colectânea de ensaios sobre a obra de Richard Dawkins, assinalando o trigésimo aniversário de O Gene Egoista.



Deixo-vos aqui um longo excerto do ensaio de Steven Pinker, professor de psicologia da Universidade de Harvard (ver o texto completo no jornal
The Times, de 4 de Março de 2006). Terá a metáfora de Dawkins ido longe demais?

Pessoalmente, nunca gostei da metáfora do gene egoista i) pela valoração moral negativa que ela encerra e ii) pela importância desmesurada que atribui ao gene. E, no entanto... que me dizem da metáfora quando iluminada pela mente de Pinker?

"I sometimes wonder, though, whether caveats about the use of mentalistic vocabulary in biology are stronger than they need to be — whether there is an abstract sense in which we can literally say that genes are selfish, that they try to replicate, that they know about their past environments, and so on. Now of course we have no reason to believe that genes have conscious experience, but a dirty secret of modern science is that we have no way of explaining the fact that humans have conscious experience either (conscious experience in the sense of raw first-person subjective awareness — the distinction between conscious and unconscious processes, and the nature of self-consciousness, are entirely tractable scientific topics). No one has really explained why it feels like something to be a hunk of neural tissue processing information in certain complex patterns. So even in the case of humans, our use of mentalistic terms does not depend on a commitment on how to explain the subjective aspects of the relevant states, but only on their functional role within a chain of computations.

Taking this to its logical conclusion, it seems to me that if information-processing gives us a good explanation for the states of knowing and wanting that are embodied in the hunk of matter called a human brain, there is no principled reason to avoid attributing states of knowing and wanting to other hunks of matter. To be specific, nothing prevents us from seeking a generic characterisation of “knowing” (in terms of the storage of usable information) that would embrace both the way in which people know things (in their case, in the patterns of synaptic connectivity in brain tissue) and the ways in which the genes know things (presumably in the sequence of bases in their DNA). Similarly, we could frame an abstract characterisation of “trying” in terms of negative feedback loops, that is, a causal nexus consisting of repeated or continuous operations, a mechanism that is sensitive to the effects of those operations on some state of the environment, and an adjustment process that alters the operation on the next iteration in a direction, thereby increasing the chance that that aspect of the environment will be caused to be in a given state. In the case of the human mind, the actions would be muscle movements, the effects would be detected by the senses, and the adjustments would be made by neural circuitry programming the next iteration of the movement. In the case of the evolution of genes, the actions would be extended phenotypes, the effects would be sensed as differential mortality and fecundity, and the adjustment would be made in terms of the number of descendants resulting in the next generation.

This characterisation of beliefs and desires in terms of information rather than physical incarnation may overarch not only life and mind but other intelligent systems such as machines and societies. By the same token it would embrace the various forms of intelligence implicit in the bodies of animals and plants, which we would not want to attribute either to fully human cogitation nor to the monomaniacal agenda of replication characterising the genes. When the coloration of a viceroy butterfly fools the butterfly’s predators by mimicking that of a more noxious monarch butterfly, there is a kind of intelligence being manifest. But its immediate goal is to fool the predator rather than replicate the genes, and its proximate mechanism is the overall developmental plan of the organism rather than the transcription of a single gene.

In other words the attribution of mentalistic states such as knowing and trying can be hierarchical. The genes, in order to effect their goal of making copies of themselves, can help to build an organ whose goal is to fool a predator. The human mind is another intelligent mechanism built as part of the intelligent agenda of the genes, and it is the seat of a third (and the most familiar) level of intelligence: the internal simulation of possible behaviours and their anticipated consequences that makes our intelligence more flexible and powerful than the limited forms implicit in the genes or in the bodies of plants and animals. Inside the mind, too, we find a hierarchy of sub-goals (to make a cup of coffee, put coffee grounds in the coffeemaker; to get coffee grounds, grind the beans; to get the beans, find the package; if there is no package, go to the store; and so on).

Computer scientists often visualise hierarchies of goals as a stack, in which a program designed to achieve some goal often has to accomplish a sub-goal as a means to its end, whereupon it “pushes down” to an appropriate sub-routine, and then “pops” back up when the sub-routine has accomplished the sub-goal. The sub-routine, in turn, can call a sub-routine of its own to accomplish an even smaller and more specialised sub-goal. (The stack image comes from a memory structure that keeps track of which sub-routine called which other sub-routine, and works like a spring-loaded stack of cafeteria trays.) In this image, the best laid plans of mice and men are the bottom layers of the stack, and above them is the intelligence implicit in their bodies and genes, with the topmost goal being the replication of genes that makes up the core of natural selection.

It would take a good philosopher to forge bulletproof characterisations of “intelligence”, “goal”, “want”, “try”, “know”, “selfish”, “think”, and so on, that would embrace minds, robots, living bodies, genes and other intelligent systems. (It would take an even better one to figure out how to reintroduce subjective experience into this picture when it comes to human and animal minds.) But the promise that such a characterisation is possible — that we can sensibly apply mentalistic terms to biology without shudder quotes — is one of Dawkins’s legacies. If so, we would have a deep explanation of our own minds, in which parochial activities like our own thinking and wanting would be seen as manifestations of more general and abstract phenomena.

The idea that life and mind are in some ways manifestations of a common set of principles can enrich the understanding of both. But it also mandates not confusing the two manifestations — not forgetting what it is (a gene? an entire organism? the mind of a person?) that knows something or wants something, or acts selfishly. I suspect that the biggest impediment to accepting the insights of evolutionary biology in understanding the human mind is in people’s tendency to confuse the various entities to which a given mentalistic explanation may be applied. One example is the common tendency to assume that Dawkins’s portrayal of “selfish genes” implies that organisms in general, and people in particular, are ruthlessly egoistic and self-serving. In fact nothing in the selfish-gene view predicts that this should be so. Selfish genes are perfectly compatible with selfless organisms, since the genes’ goal of selfishly replicating themselves can be implemented via the sub-goal of building organisms that are wired to do unselfish things such as being nice to relatives, extending favors in certain circumstances, flaunting their generosity in other circum- stances, and so on. (Indeed much of The Selfish Gene consists of explanations of how the altruism of organisms is a consequence of the selfishness of genes.) Another example of this confusion is the claim that socio-biology is refuted by the many things people do that don’t help to spread their genes, such as adopting children or using contraception. In this case the confusion is between the motive of genes to replicate themselves (which does exist) and the motive of people to spread their genes (which doesn’t). Genes effect their goal of replication via the sub-goal of wiring people with goals of their own, but replication per se need not be among those sub-sub-goals: it’s sufficient for people to seek sex and to nurture their children. In the environment in which our ancestors were selected, people pursuing those goals automatically helped the relevant genes to pursue theirs (since sex tended to lead to babies), but when the environment changed (such as when we invented contraception) the causal chains that used to make sub-goals bring about superordinate goals were no longer in operation."

18 março 2006

“Espelhos...” (un)interrupted!

Vi Capote, o filme (Bennet Miller, 2005). Sem dúvida, o melhor filme, pela intensidade e densidade dramáticas! Repararam na descrição de Perry Smith a Truman Capote sobre como ele “decidiu” cometer o assassinato? Espelhos...? Deixo-vos o resultado do assalto à minha mente pela língua de Capote. Lentamente:

What you are,
Within,
You will not be.
Others know you are,
Less you will be,
Free,
To be,
Within.
Others know you are,
Command that will be.
Before within is without,
Just pause!

16 março 2006

A viagem de Pontes e a Ciência Viva

Muito se tem discutido na imprensa brasileira sobre os benefícios da viagem do astronauta Pontes e dos seus experimentos espaciais na Estação Espacial Internacional (ISS). Sendo um estrangeiro no Brasil, deixarei a exposição pública das opiniões políticas para os brasileiros. Mas não resisto a publicar neste blog uma reportagem sobre as pessoas que vivem e fazem viver a ciência na Agência Espacial Europeia. Do jornal diário português PÚBLICO, um dos melhores jornais diários do mundo! Opinião parcial, claro.

PÚBLICO
Quinta, 16 de Março de 2006

Concurso do Ciência Viva
Desafios de física levaram duas alunas a centro de testes de satélites
Teresa Firmino, Noordwijk

Portuguesas visitaram local da Agência Espacial Europeia onde se testam aparelhos que, quando forem para o espaço, vão ser notícia

Através de uma galeria envidraçada, os visitantes podem olhar lá para baixo, onde homens de batas, toucas e pés empantufados andam de roda de um satélite meio escaqueirado. É o Herschel, embrulhado num material dourado. Vanessa Carvalho, de 19 anos, e Filipa Farinha, de 18, estão a vê-lo porque ganharam um concurso cujo prémio era uma visita ao Centro Europeu de Tecnologia e Investigação Espacial (ESTEC), que a Agência Espacial Europeia tem em Noordwijk, na Holanda.
Participaram no concurso A Física em Desafios, lançado em 2005 pelo Ciência Viva. Os desafios, destinados aos alunos do ensino secundário, foram concebidos pelo físico português Manuel Paiva, que dirige o Laboratório de Física Biomédica da Universidade Livre de Bruxelas (Bélgica). A aventura que levou à Holanda as duas colegas da Escola Secundária do Bocage, em Setúbal, começou quando Filipa Farinha viu no site do Ciência Viva que dois rapazes tinham ganho os Desafios do Espaço do ano anterior. "Achei interessante." E, como sabia que a amiga se interessa por assuntos do espaço, até quer ser astronauta, foi dizer-lhe.
Participaram nalguns desafios quando frequentavam o 12.º ano. A melhor participação do ano teria direito a um prémio-surpresa. Era a visita ao ESTEC. Não ganharam o primeiro desafio (sobre a primeira lei de Newton), mas tiveram sorte nos outros dois (o tema eram as três leis de Newton do movimento e a força centrífuga). Para cada desafio, havia um excerto de um DVD da Agência Espacial Europeia (ESA), Newton in Space, em que aparece o astronauta espanhol Pedro Duque a fazer experiências na Estação Espacial Internacional (ISS), concebidas por Manuel Paiva. Também aparecem experiências feitas na Terra, por alunos a demonstrar como as mesmas leis actuam cá em baixo. Havia que explicar o que acontecia. Um exemplo: no desafio sobre a força centrífuga, Pedro Duque faz uma experiência com dois flutuadores de pesca ligados por um fio: num injecta café líquido, no outro não. Em microgravidade, quando o astronauta corta o fio, os flutuadores afastam-se e o desafio é calcular a massa do café.

Inclinadas para investigar
Na visita ao ESTEC, nas férias deste Carnaval, a vida delas já se afastou do espaço - mas não da ciência. "Sempre estive inclinada para a investigação, não tanto do espaço, mas mais das doenças. O meu objectivo era medicina, mas entrei para farmácia", diz Filipa Farinha, que também gosta de astronomia. Já Vanessa Carvalho, que gostava muito de engenharia aeroespacial, está em medicina: "Queria juntar a investigação médica ao espaço. Gosto de saber dos problemas do corpo quando a gravidade não actua. "No ESTEC, o que esperavam ver? "Disseram-me que era investigação tecnológica", dizia Vanessa Carvalho antes da visita. "Não sei se terá muito a ver com laboratórios. São mais máquinas", dizia Filipa Farinha. As respostas têm a influência de já terem participado na Ocupação Científica de Jovens nas Férias. Num Verão, estiveram no Instituto de Higiene e Medicina Tropical, em Lisboa. A fazer o quê? "A dissecar mosquitos", responde Vanessa Carvalho. "A fazer preparações ao microscópio com sangue de rato contaminado com malária", acrescenta a amiga. "Cortava-se um bocadinho do rabo e tirava-se sangue", completa Vanessa Carvalho.
No ESTEC, vêem que os laboratórios não são só de biologia. Além do Herschel, que irá para o espaço em 2007, Rosita Suenson, das relações públicas do ESTEC, leva-as a ver o Automated Transfer Vehicle (ATV), o veículo para atracar na ISS e levar mantimentos e combustível. "Vamos construir sete, porque não são reutilizáveis. Depois serão cheios de lixo e queimados na atmosfera", explica-lhes. Homens assépticos rodeiam o primeiro ATV, o Júlio Verne, a lançar em 2007. Também está embrulhado no material dourado. "É para garantir que os instrumentos a bordo ficam à temperatura ambiente", diz Suenson, um dos mais de mil funcionários do ESTEC. O espaço onde se testam os aparelhos é muito alto, separado por enormes portões. Quando um se fecha, os aparelhos espaciais ficam sujeitos a 152 decibéis, para simular vibrações de quando descolarem num foguetão.
"Muito giro", diz no final Vanessa Carvalho (que ficou a saber que, para concorrer ao corpo de astronautas da ESA, é preciso ter formação superior). Com elas, os desafios do Ciência Viva acabaram, mas Manuel Paiva responde a todas as dúvidas, no endereço
space@cienciaviva.pt.


Cêskiçabem!

14 março 2006

Governo aprova exploração comercial de florestas públicas




Notícia de hoje na revista ComCiência. A foto é no rio Tapajós, de Rafael Oliveira.

12 março 2006

Comentários no blog “Ciência em Dia”

Sobre o texto Pílulas deterministas do Dr. Collins (9/3/2006). Ver outros comentários no link do texto.

Sem dúvida que existe um mercado de propaganda científica, principalmente na biotecnologia! É natural num meio científico de elevado impacto social. De certa forma, a propaganda dos benefícios potenciais da biotecnologia serve de cenoura para que a sociedade galope atrás de projetos como o do Genoma Humano. Mas se o Homem não seguisse as "cenouras" que têm iluminado o seu caminho para fora da caverna, ainda hoje lá estaria, amedrontado. A melhor forma de evitar o fatalismo da existência humana é uma boa dose de determinismo. Nesse sentido, a negação do determinismo é inimiga do livre arbítrio. O conhecimento assente no determinismo esbarra na complexidade, o não quer dizer que determinado fenómeno não tenha causas. É buscando causas e seus efeitos que aprendemos a ser mais Humanos, na nossa capacidade de prever e fazer opções. A opção pode ser a "errada", mas tudo é melhor do que viver na escuridão de uma caverna. Até para a Dona Maria, pode-lhe perguntar!
Abraços livres.

Osame, a tendência para uma visão determinista do mundo parece-me uma excelente estratégia evolutiva de aumentar a probabilidade de sobrevivência no mundo biológico. Numa primeira fase ela permitiria aos organismos tomar determinadas decisões sobre o seu futuro com base em estímulos sensoriais. Se se aceitar isto como um proto-determinismo, então talvez exista alguma tendência inata para o determinismo. No Homem, a tendência aumentaria associada à capacidade tecnológica, conduzindo ao mecanicismo em detrimento da metafísica. Determinismos serão tanto mais possíveis quanto mais simples forem os sistemas alvo. Em sistemas complexos, resta-nos tentar quantificar o grau de incerteza que decorre do nível de conhecimento. A capacidade de observar e analisar adequadamente sistemas complexos está ainda na sua infância. Estou plenamente convicto que o avanço do conhecimento se dará no sentido de permitir um conhecimento cada vez mais mecanicista de sistemas complexos, incluindo sistemas genéticos que determinam uma variedade de fenótipos. É mais perigoso negar este futuro do que começar a prever e discutir as suas implicações nas sociedades contemporâneas. E acima de tudo, ter esperança que esse futuro chegue apenas quando tivermos um mundo globalmente composto por democracias de cidadãos informados!


Marcelo, a discussão do determinismo genético simplista do século XX não faz hoje sentido, é um anacronismo. Depois de milénios de evolução biológica e tecnológica, a espécie humana persegue o controle biotecnológico dos processos evolução. Para si própria, talvez espere a libertação das limitações biológicas à verdadeira Humanidade(?). Lembro-me sempre que as unidades da história evolutiva são as espécies, os indivíduos são meros replicadores, aos quais os humanos dão (e se dão) demasiada importância. Por isso, não dê assim tanta importância a tantos e tão poucos humildes replicadores que o acompanham neste seu blog.
Abraços de Thistledown.

Já agora, clarifico, minha agenda política poderia ser definida como a libertação do Homem de todo e qualquer espartilho, inclusive a mim dos meus próprios. Não que eu preveja ter alguma relevância para essa causa, mas se surgir uma oportunidade estarei na linha da frente. O objectivo seria permitir o livre arbítrio em sociedades de indivíduos livres pela veiculação igualmente livre da INFORMAÇÃO/CONHECIMENTO! Banal? A questão é que só será possível se se criar um sistema neutro e hierarquicamente estruturado, em graus de inteligibilidade pelo cidadão, de veiculação da informação/conhecimento. Reparem que esta é muito diferente da informação/notícia, pelo que penso que a imprensa contemporânea não será capaz de cumprir a tarefa. Falo claro de uma biblioteca universal (não a da IURD). Afinal, sempre me senti um alexandrino (também o de Alexandre Durrell, pois a metafísica também é uma paixão).

Abraços politizados.

Marcelo, divirto-me muito mais quando o debate é intelectualmente sério. Enquanto a sociedade de informação que preconizo não existe, resta-me ser exigente com os profissionais que, como você, têm a responsabilidade de a veicular. Repare que, como cientista, tenho de considerar o jornalista de ciência como o meu representante (e não só do meu trabalho ou área específica!) num parlamento de cidadãos alargado. Os parlamentos de representantes eleitos não promovem hoje debate algum para além da instantaneidade eleitoral. É o grande risco para as democracias, aumentando a probabilidade do ressurgimento do autoritarismo, e em sociedades altamente biotecnológicas, do Fordismo de Huxley que você tanto teme. Eu realmente penso que a Dona Maria não nos vai perdoar, a mim como cientista, e a si, como jornalista, que não nos tenhamos esforçado por lhe entregar uma representação fiel das "verdades" disponíveis num determinado momento.
Finalmente, quanto à unidade evolutiva, a espécie como conjunto genealógico é a unica entidade/categoria evolutiva, não artificial, com propriedades emergentes (sim, tendo a concordar com Gould neste ponto) que tem condições de sobreviver ou se extinguir!. Da extinção não reza a história, em evolução lidamos com os fragmentos históricos, procurando reconstitui-la. Por isso a sobrevivência é das espécies. Agora, tudo depende da escala espaço/tempo em que estamos interessados. Podemos pensar na evolução de complexos genéticos co-adaptados como unidades evolutivas, mas eles não existem de forma independente (discordo de Dawkins, portanto). Complexos genéticos existem em indivíduos, em populações, em espécies. Mas a espécie é a unidade sintética que pode ser conceitualizada como interface biológico com o meio, ocupando seu nicho natural e construido (concordo com Lewontin, embora esteja distante das motivações marxistas de muita de sua argumentação, e da de Gould já agora). Genes, indivíduos e populações são singularidades (embora sistemas com suas leis próprias numa realidade pseudo-fractal) e contribuem para um sistema de diversificação adaptativa e não adaptativa (induzida talvez, como sugerem Jablonka&Lamb) que poderá eventualmente resultar em novas espécies. Quando saímos do conjunto genealógico, caminhando para as profundezas da árvore da vida, vai-se apagando o registo genealógico que liga, em última análise toda a biodiversidade, a extinção predomina, embora diferentes graus de (in)certeza e/ou a estética de cada um nos permitam ainda delimitar categorias de biodiversidade (Família, Ordem etc). Peço desculpa ao venerável Mayr e a outros tantos pelos quais nutro respeito e admiração, intelectuais, ao tentar pensar de forma independente!

Abraços despartilhados.

Comentários no blog "Ciência em Dia"

A partir de hoje, colocarei aqui no blog comentários a textos de outros blogs de ciência, que julgue interessante registar para uso futuro.

Sobre o artigo Natureza Humana em Evolução, publicado na Folha de São Paulo (8/3/2006). Ver a sucessão completa de comentários no link do artigo.

A Natureza Humana reside no que nos é comum apesar de diversificação evolutiva (seleção natural sensu lato). Metodologicamente, é mais simples conhecer as diferenças do que o que é comum. Grupos humanos evoluíram isolados e se diferenciaram. O processo foi sendo perturbado pela migração entre grupos, com miscigenação, que ocorre acualmente numa escala sem precedentes. Esta tem sido uma experiência evolutiva muito mais interessante (e até perigosa para a saúde humana!) do que qualquer manipulação biotecnológica que seja hoje possível. À evolução pouco lhe interessa a saude Humana, é um inexorável produto de interações regulatórias entre genótipo-fenótipo e fenótipo-ambiente. E por que a Natureza Humana não resultaria de interações evolutivas, tal como aliás Pinker sugere em Tábula Rasa (Companhia das Letras, 2005)? Um indício de que existe uma Natureza Humana é que eu consigo vislumbrar humanidade no conservadorismo quase religioso da posição do Marcelo Leite sobre a evolução biotecnológica da espécie humana.

Abraços progressistas.

09 março 2006

Raças humanas, realidade biológica ou social?

A divisão de humanos em categorias raciais é polêmica e gera infinitas discussões na sociedade e na ciência. A pergunta recorrente é: raças são uma realidade biológica?

Alguns evolucionistas dirão que raças são uma construção social, afinal a diversidade genética dentro de grupos raciais é imensa, o que torna artificial a separação da espécie Homo sapiens em subconjuntos discretos. Luca Cavalli-Sforza, da Universidade Stanford, alerta em seu livro Genes, povos e línguas (2003, Companhia das Letras) para o fato de que, se examinarmos a constituição genética com suficiente detalhe, qualquer grupo populacional pode ser separado dos outros. Dessa forma, as fronteiras estabelecidas entre as raças são necessariamente artificiais. No entanto, o geneticista reconhece que o conceito de raça pode ser importante devido a diferenças em suscetibilidade a doenças e reação a medicamentos.

É exatamente desse argumento que o geneticista Sérgio Pena, da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), discorda. De acordo com notícia publicada na revista Ciência Hoje em janeiro/fevereiro deste ano, Pena acredita que diferenças como cor de pele ou textura de cabelo são recentes, resultado de adaptação às condições ambientais dos continentes colonizados. A conclusão seria que esses parâmetros não podem ser usados para avaliações clínicas ou desenvolvimento de remédios.

Ora, se certas características externas se modificaram como resposta à seleção natural, por que o mesmo não seria verdade para aspectos ainda mais importantes para a sobrevivência? Existem inúmeros exemplos de diferenças raciais em medicina, seguem aqui alguns:

- Segundo o médico Drauzio Varella, alguns grupos indígenas têm altos índices de ácido úrico em seu organismo, substância que, ao ser depositada em forma de cristais nas articulações, é responsável pela gota. Os níveis de ácido úrico no sangue são afetados pela dieta, mas algumas populações são mais suscetíveis do que outras a mudanças em alimentação. Há evidências de que a constituição genética tem influência importante no metabolismo do ácido úrico.

- Outro artigo de Varella dá uma explicação evolutiva para a prevalência de hipertensão na população negra, nos Estados Unidos. A causa seria um drástico evento seletivo recente: as condições em que escravos foram transportados da África para a América.

- Segundo Jeremy Squire, do Instituto do Câncer de Ontário (em palestra durante o 51º Congresso Brasileiro de Genética, em setembro de 2005), na América do Norte o câncer de próstata é mais prevalente na população de origem africana — os chamados afroamericanos, mesmo que já estejam longe da África há inúmeras gerações.

Um artigo recém publicado no periódico científico PloS Biology detectou sinais de seleção natural em uma ampla variedade de genes em populações humanas. Os autores ressaltam que os eventos seletivos são muito recentes em termos evolutivos, o que contraria a argumentação de Sérgio Pena de que raças não existem por ter a espécie humana surgido há apenas 150 mil anos. Especificamente, os pesquisadores detectaram seleção natural em genes ligados a pigmentação da pele e metabolismo, o que reflete um processo de adaptação a condições modernas e novos ambientes. Alguns trechos do DNA identificados como alvo de seleção estão ligados a aspectos de relevência médica, como hipertensão por sensibilidade a sal e suscetibilidade a alcoolismo.

É surpreendente que, num momento em que a informação genética é tão abundante, temas como o significado biológico de raças ainda sejam foco de discussão. Os projetos genomas mostraram tanta semelhança genética entre humanos e outros organismos — sobretudo, é claro, nossos primos chimpanzés — que a pergunta não respondida agora é: o que nos faz tão diferentes deles? Será que a divisão entre espécies também não é arbitrária, assim como entre raças humanas? Parece brincadeira, mas há quem defenda a abolição das barreiras entre espécies.

Mas não embarquemos em tangentes. O que queria ressaltar aqui é que certas características distinguem grupos humanos, e que reconhecê-las pode ser benéfico. A militância, que leva pessoas informadas a negar distinções raciais, já deveria estar enterrada a estas alturas. Reconhecer diferenças não justifica desigualdades sociais. Por mais que ninguém seja totalmente neutro, é preciso buscar uma separação entre política e ciência. Responsabilidade ainda maior têm aqueles — sejam jornalistas ou cientistas — envolvidos em divulgação de ciência para o público leigo.

Substância de pererecas mostra-se eficaz contra malária e leishmaniose


Notícia minha na revista ComCiência, publicada em 8 de março. A Phyllomedusa hypocondriales, na foto ao lado, é a estrela da notícia. Foto de Célio Haddad.

01 março 2006

Espelhos...

A imagem inserida no texto anterior é um detalhe desta pintura a óleo do holandês Jan Vermeer.

A imagem da mulher que toca é reflectida duplamente, no espelho e nos olhos do instrutor que a observa.

A lição de música
Para saber mais sobre esta pintura ver http://www.artchive.com/vermeer/vermeer1.html