23 março 2006

Abortos - e nascimentos - geram problemas éticos

Aborto sempre foi assunto controverso, carregado de questões éticas, morais, religiosas e principalmente emocionais. Digo principalmente emocionais pois ética, moral e religião são em parte frutos da racionalização, ou organização prática, de uma série de emoções humanas - sistemas de regras que, por ângulos diversos, moldam a convivência em sociedade. É fácil, mesmo que subjetivamente, entender o impacto que um aborto tem na mulher, sendo ela a portadora do feto, e portanto responsável direta pela decisão, sofredora da dor física, colecionadora da ferida emocional e do julgamento alheio. Presenciei ao longo dos últimos 15 anos, na capacidade de amiga, confidente, e até fiadora, a saga de mulheres que abortaram em várias situações e por razões variadas. Algumas resolvendo um erro de planejamento, falta de atenção à contracepção, em situações em que não se sentiam prontas para a maternidade: muito jovens, ainda estudando, sem relacionamento estável, o parceiro errado, sem dinheiro, sem apoio, sem vontade, com medo, ou a soma de todas as anteriores. Outras, perdendo espontaneamente, com o presságio de um sangramento leve, um filho planejado e muito esperado.

As implicações do aborto, da escolha que leva a ele, da política que o envolve em diferentes países, dos complicados aspectos culturais e religiosos que estão a ele ligados, são muitas. Poderia passar dias escrevendo sobre cada elemento e até entrar nos detalhes das versões mais "especializadas" como o aborto seletivo. O assunto já foi até discutido num comentário de Maria Guimarães, nesse mesmo blogue, sobre o aborto de fetos do sexo feminino na Índia. Recentemente aprendi que existe também aborto seletivo para diminuir o número de fetos de gestações múltiplas - quem tem quadrigêmeos, por exemplo, pode abortar um ou dois dos fetos para manejar o número de bebês. Tudo muito prático e muito complicado ao mesmo tempo. Me sinto tentada a elaborar uma sequela à discussão começada por Maria sobre a condição social na Índia, sobre os efeitos da pobreza e da cultura dos dotes no sistema familiar daquele país tão interessante e que visitamos juntas pela primeira vez, anos atrás. Também me sinto inclinada a investigar a mente e as condições sociais das mães e pais que, não ligados a dilemas culturais e financeiros como os indianos, decidem abortar um feto dentre trigêmeos, por exemplo. Mas esses são assuntos dos mais complexos e que merecem artigo próprio, pesquisado, e não essa avalanche de pensamentos frouxos que vou colocando na tela.

Não resisto, no entanto a comentar a "redução seletiva". Essa técnica foi originalmente criada como procedimento médico que visa reduzir os riscos de vida da mãe e dos bebês em caso de gestações multíplas extremas onde a mulher carrega 6, 7 ou mais fetos. Atualmente, no entanto, a redução seletiva vem sido usada em casos longe de extremos, como na gestação de gêmeos. Tornou-se uma opção da mãe, da família, cada vez mais comum. O uso da redução seletiva vem também aumentando nos casos de gestações múltiplas de mais de 3 fetos que resultam das técnicas de fertilização artificial, tão em alta atualmente. Parte do procedimento da fertilização in vitro, por exemplo, inclui implante de múltiplos embriões no útero da paciente para aumentar a chance de sucesso da gravidez. É interessante notar também que muitos dos textos que li sobre aborto seletivo estão em periódicos legais e não médicos, o que mostra o âmbito social e público da questão. (Olhem, como exemplo, esse artigo publicado em um periódico chamado Duke Journal of Gender and Law:
http://www.law.duke.edu/shell/cite.pl?7+Duke+J.+Gender+L.+&+Pol'y+29).

A própria popularidade da fertilização in vitro e do desenvolvimento astronômico da medicina reprodutiva é interessante. Em parte porque mostra a trajetória da mulher e do núcleo familiar em certos grupos socioeconômicos e culturais: a carreira com peso cada vez maior e os filhos chegando cada vez mais tarde. Com isso aumenta muito o número de mulheres de idade relativamente avançada (digamos de mais de 35 anos, uma faixa etária estatisticamente importante em reprodução) que desejam ter filhos e enfrentam todo tipo de dificuldades. E usando isso como gancho, penso numa tragédia que acompanhei recentemente e que mostra o aborto por um ângulo ainda diverso.

Uma mulher de 39 anos, que chamarei aqui de Bete, conseguiu engravidar depois de quase um ano de tentativas falidas incluindo um aborto espontâneo nos primeiros 2 meses de uma gravidez prévia. Bete não contou aos seus amigos ou parentes sobre a gravidez até depois do quarto mês, para garantir que o bebê fosse sobreviver aqueles meses críticos. Bete é uma mulher educada, com uma carreira, e num relacionamento estável e saudável onde ambos querem o bebê. O anúncio, depois daquele quarto mês e vários exames que indicavam que o bebê estava bem, foi recebido com muita comemoração por todos. Bete e seu marido conseguiram sentir, pela primeira vez, o medo de serem pais de primeira viagem e não o medo de perderem o filho esperado. No quinto mês houve algum sangramento e exames adicionais revelaram pouco fluido amniótico, um mau sinal. O exame ultrasonográfico acabou por revelar um feto com inúmeras anormalidades sérias incluindo malformações cranianas e cerebrais, joelhos fundidos, uma bexiga urinária vestigial, desvios na coluna vertebral e malformações cardíacas graves.

Os médicos disseram a Bete que o bebê provavelmente morreria ao nascer e que a melhor solução era o aborto. Sim, aborto que sob a luz da medicina moderna, salva a mãe, o pai, a família e o bebê de certa parte da tragédia. Salva a mãe do choque de ver, na mesa de parto, algo bem diferente do tão esperado bebê perfeito " com 10 dedos nas mãos e 10 nos pés". Salva o bebê de uma morte por insuficiência cardíaca, deficiência cerebral incompatível com os primeiros momentos de vida fora do ambiente protegido da barriga da mãe. Salva a família da expectativa seguida de monstruosa decepção. Por outro lado ninguém é salvo, principalmente não a mãe, de ter que tomar a decisão do aborto, ou melhor de aceitá-lo a contragosto, e do luto que resulta.

Bete "decidiu abortar", de acordo com os conselhos médicos, e teve que marcar o procedimento de 2 dias de duração, para dalí há uma semana. É quase melodramático demais dizer que Bete foi para a casa com sua grande barriga de grávida sabendo que aquele bebê estaria morto em poucos dias. Ela aceitou beber 3 copos de vinho num jantar, cada gole com tristeza, e com aquela leve embriaguez de quem não colocava álcool na boca há 5 meses. Se eu estivesse criando uma personagem de ficção, escolheria outros eventos e outras palavras, em prol da boa literatura. Em romance algum me permitiria, fosse escritora, colocar uma Bete como essa, que chorava ininterruptamente antes e depois do aborto feito. Que no dia após a procedimento final acordou com os seios duplicados de tamanho, em plena lactação, porque seu corpo "pensava" que tinha dado à luz. E deu, mas não como esperado.

Essa história foi dura de assistir, em parte porque sou uma mulher de trinta e poucos anos e portanto consigo identificar-me com Bete; em parte porque foi o primeiro aborto que acompanhei onde a decisão era da mulher, do casal nesse caso, e não era. Uma decisão que carrega implicações, dores e alívios diferentes dos que estava habituada a considerar. O aborto talvez trouxesse algum alívio, ou algum senso mais profundo de fracasso, ou alguma culpa? Como saber? Mas o que me impulsionou nessa linha de pensamento, nesse questionamento, nessa contemplação da natureza humana e de seus problemas biológicos foi um artigo que li pouquíssimo depois de ter acompanhado de perto o caso da Bete. O artigo chama-se "A wrongful birth?" e saiu na revista do New York Times em 12 de março desse ano, por Elizabeth Weil. Trata de asssunto quase oposto ao que narrei acima.
http://www.nytimes.com/2006/03/12/magazine/312wrongful.1.html?ex=1143262800&en=eb222e9d274d1c0a&ei=5070).

Nesse artigo Weil conta o caso da Nova Iorquina Donna Branca para discutir as implicações legais do chamado "wrongful birth". Como traduzir esse termo legal? Nascimento errôneo? Tão desconfortável quanto o termo é que ele implica. Donna engravidou aos 31 anos e seu caso é semelhante ao de Bete mas com a diferença fundamental de que o bebê em questão tem hoje 6 anos. Não foi abortado, portanto, mas vítima do tal de nascimento errôneo. Donna era mais jovem que Bete e os médicos não estavam tão preocupados com complicações. Ela passou os primeiros 6 meses tomando os cuidados pré-natais que lhe foram indicados por seu obstreta e acreditava, também por conta da opinião especializada do obstreta, que tudo estava bem com seu filho. A gravidez havia sido um pouco conturbada, com sangramentos no primeiro trimestre e pouco ganho de peso, mas só aos 6 meses e meio é que Donna e seu marido descobriram que o filho tinha Síndrome de Hirschhorn. A descoberta foi acidental quando, depois de um sangramento severo enquanto passava o dia em outro estado, Donna acabou no pronto-socorro de um hospital em Nova Jersey. Em consulta com o ginecologista de plantão descobriram que os exames pré-natais de Donna, incompletos ou negligenciados pelo seu médico, deixaram de mostrar um feto bem menor que o normal e com anomalias cromossômicas (veja artigo original para detalhes).

Nessas circunstâncias, como no caso de Bete, o aborto é aconselhado, entretanto a gestação de 28 semanas de Donna estava avançada demais e ela não tinha mais essa opção (as leis do estado de Nova York estipulam um limite de 24 semanas para aborto). O bebê nasceu prematuro, muito pequeno, desfigurado e com todas as anomalias ditadas pela síndrome que portava tais como retardo mental grave, e problemas respiratórios e digestivos severos. O filho de hoje 6 anos possui capacidade mental de um bebê de 6 meses e passou grande parte dos seus poucos anos de vida em instituições especializadas, sendo alimentado por meio de tubos e monitorado todo o tempo por enfermeiras. Donna e o marido processaram seus médicos em 2004, por "medical malpractice". O dinheiro que ganharam com o processo hoje ajuda a pagar as despesas médicas altíssimas que tiveram nos últimos 6 anos.

Essa categoria de processo por negligência médica foi estreada em 1966 nos Estados Unidos com o caso de uma mulher que contraiu rubéola durante a gravidez e que recebeu garantia de seu médico de que o bebê não seria afetado. O bebê nasceu com graves deficiências de audição, visão e fala. As cortes negaram o processo e enfatizaram, segundo Weil, que várias pessoas famosas e influentes portavam defeitos físicos e que o nascimento de um ser humano não devia ser comparado com a criação de gado premiado. Em 1978, cinco anos depois de estabelecido o direito da mulher de abortar uma criança com defeitos físicos ou problemas mentais, o caso de uma mulher de 35 anos ("mãe geriátrica" em terminologia médica) que deu à luz uma criança com síndrome de Down foi levado à justiça. Ela alegou que os médicos não haviam-lhe alertado ao risco mais alto de gerar uma criança defeituosa, dada sua "idade avançada". As cortes nesse caso decidiram em favor da família, por conta do preço mais alto de criar uma criança deficiente.

Ao ler sobre esses casos não consigo decidir, nem por aproximação, o que acho certo e o que acho errado. Não consigo, de maneira imparcial, separar o justo do injusto. Na verdade não sei se essa questão é passível de tal julgamento. Numa análise simplística, parece óbvio que dar a luz a uma criança com defeitos como os descritos no caso de Donna seja um mal negócio para todos os envolvidos. O aborto, nesse caso, seria solução justa, correta. Parece, num outro extremo do espectro, que abortar uma criança por ela não ser do sexo desejado, ou abortar um dos fetos de um par de gêmeos para planejar o número de filhos, seja injusto ou errado. Mas as decisões são complexas e não, de maneira nenhuma, independentes do indivíduo e de cada família e sua realidade social e cultural.

Considero vários dilemas: Até que ponto temos o direito de escolher as características dos nossos filhos? Será que em algum futuro, mesmo que longínquo, os pais terão o direito de abortar os bebês que não se enquadrem dentro da sua expectativa? Levar a termo os bebês com a cor de olhos e cabelos que lhes parecer melhor? Selecionar, através dos testes genéticos pré-natais cada vez mais refinados, crianças com certas características de personalidade, certo QI? Considerar esse desfecho soa quase como uma piada de mau gosto, ficção científica, mas a verdade é que as fronteiras são tênues no que diz respeito a decisões que culminam no nascimento ou na morte de um ser humano. Tempere as questões do que é certo e errado com os aspectos legais: atualmente, nos Estados Unidos, os médicos tendem a aconselhar o aborto ao primeiro sinal de que possa haver algum problema com o feto, por medo de serem processados.


Por outro lado, quais os direitos discutidos aqui? Os dos pais, adultos, já parte desse mundo, ou os do bebê, ainda nem nascido? E de que "bebê" falamos? Um genérico ou aquela uma vida em particular, em jogo em cada decisão? A polêmica é grande sem nem precisar entrar na questão de se existe ou não alma, ou do possível momento em que a alma, caso exista, passe a habitar aquele grupo de células que compõe o feto.

Gostaria de deixar o leitor com algumas idéas e considerações que julgo importantes porque profundamentes ligadas à natureza humana. Como, se tentarmos responder honestamente, definiremos o que é certo para o ser humano? Que traço de comportamento nos identifica como raça? O direito de escolher? A capacidade de analisar emoções que moldam nossas decisões? A habilidade de prever consequências? E como resolveremos os problemas éticos dos nascimentos e dos abortos? Talvez pensar sobre o assunto seja um bom começo, mas talvez não haja, pelo mundo ser tão vasto e coberto de tão diversos seres humanos, uma solução que agrade a todos. Acredito que a vida seja preciosa, mas de que vida estamos falando?

16 comentários:

Anónimo disse...

Nossa Suzana,

Acho que esse é o primeiro post, que eu leio, de sua autoria. Um murro no estômago, no fígado, no baço... doído. Comentar, agora, até parece sem nexo, insensato; principalmente quando comparado às reais questões e emoções em questão. :-(

Mas, como ser 'chato' é minha profissão, quero fazer uma observação. Logo no primeiro parágrafo, vc diz: "Digo principalmente emocionais pois ética, moral e religião são em parte frutos da racionalização, ou organização prática, de uma série de emoções humanas - sistemas de regras que, por ângulos diversos, moldam a convivência em sociedade."

Tecnicamente falando, ie, sob a luz da Filosofia das Religiões ou da Sociologia das Religiões (ou Antropologia), "religião" é uma questão de fé, não de racionalização. Ou seja, vc acredita num determinado conjunto de idéias porque vc tem ; por alguma razão vc se sente confortável perante aquele determinado arcabouço (religião) e, portanto, vc o escolhe. Nesse sentido, é um erro se tentar racionalizar a fé: afinal, por definição, essas são coisas díspares, que pertencem a "conjuntos" diferentes, a "religião" pertence ao conjunto da fé (irracional) enquanto que a "razão" pertence ao conjunto da ciência (racional).

Portanto, apesar de entender (ou achar que entendi) o que vc quis dizer, acredito que sua definição ("racionalização das emoções") só pode ser aplicada à "ética" e à "moral": É sob essas áreas que colocamos nossas escolhas sociais e culturais; na "ética" colocamos nossas definições de 'certo' e 'errado', e na "moral" colocamos os nossos 'comportamentos', o 'conduzir da vida'.

Bom, hoje (29Mar06) já não é mais ontem (28Mar06), o dia em que eu comecei a escrever esse comentário: Administrar a rede de computadores tem seus perks... Agora estou tentando editar um arquivo de 815Mb. ;-)

Então, vou parando por aqui... []'s!

none disse...

Daniel,
concordo com você. Acho sim que confundi um pouco as definições. Depois que escrevi olhei muito pra essa frase mas não consegui achar jeito melhor de me expressar. O que quiz dizer é que, apesar da religião ser do conjunto "fé", esta, o ato de acreditar, é em si carregado de decisões, e portanto também intersectado com a racionalização. Afinal, religião é uma organização da fé, ou seja, a gente tem que escolher no que vai acreditar, não é? Outro assunto interessantíssimo. Talvez valha mais a pena deixar a religião na zona cinza entre o emocional, a fé e a razão! A espiritualidade, um conceito mais abstrato, é que fica no âmbito mais afastado da razão.
Obrigada pela seu comentário! Abraço
suzana

Maria Guimarães disse...

é mesmo, assunto tão complexo e carregado de emoções que chega a ser difícil comentar.
por acaso, acabo de ver uma notícia no site da bbc brasil: "Índia condena médico por selecionar sexo de bebê" (http://www.bbc.co.uk/portuguese/noticias/story/2006/03/060329_indiaabortoprc.shtml)
a notícia, mais uma vez, vem sem nenhuma profundidade. é hipocrisia condenar o médico? as mulheres vão deixar de abortar "só" porque não têm médico para fazê-lo? não aborda nada disso. gostaria de conversar com alguém que saiba mais sobre a Índia atualmente, mas isso é outro assunto.
é que isso puxa a questão mais ligada ao texto da sujana, como nossa autora bloguística é mais conhecida na índia. concordo, qual vida é preciosa? duvido que alguém saiba responder com clareza. o problema é quando a sociedade dita com tanta força o que é uma pessoa de sucesso que, para exagerar, ter olhos castanhos pode ser visto por alguns como tão debilitante quanto uma síndrome de down. ou, no caso da Índia, pouca coisa é mais debilitante (para a família, pelo menos) do que filhas demais. ou filhos de menos. e aí, qual é o limite do que a ética da sociedade aceita?
entra aqui toda a discussão por ocasião do livro e entrevista do watson, ano passado. eu e joão já discutimos isso, e temos opiniões diferentes. joão, vem opinar.
pra concluir, do ponto de vista feminino, duvido que haja circunstâncias em que abortar seja fácil. então, sejam quais forem os parâmetros que levam uma mulher a achar que tal vida não é preciosa que chegue, eles têm que ser bem fortes.

João Alexandrino disse...

Til hamingju Suzana!!!
Como funciona o processo de decisão que pode levar a um aborto. Aqui eu separaria a decisão de quem considera a possibilidade real de um aborto, mais emocional certamente, do processo de reflexão de quem considera o aborto apenas como uma hipótese teórica, talvez mais influenciado por confabulações racionais e etico-morais. Eu penso que a decisão de uma mãe/família provocar um aborto tem a haver com estados emocionais que permitem prever que a criança não terá chances de ter uma vida que a mãe/família julguem valer a pena. Mas que vida? é exatamente o cerne a questão e resposta será obrigatoriamente diferente em diversas circunstâncias. Por exemplo (como paradoxo máximo), que existe de errado com a vida que se gera como resultado de violação? Nada de errado! exceto a (in)capacidade da mãe se convencer que vai amar plenamente aquela criatura! E sem amor aquela vida não irá valer a pena. A decisão é tanto egoista como altruista, envolvendo muitas vezes auto-engano. Como funciona este processo de decisão? Na minha opinião, é um processo que se baseia em premissas várias, relativas a interações entre a criança, família e grupo/cultura em que a família existe. Reparem que existe um certo determinismo no processo decisório, o aborto é a interrupção de um processo pela previsão futura de que a vida da criança não vai valer a pena. Uma outra questão é até onde deveremos deixar ir este determinismo, que leva à seleção de fenótipos da descendência: amado/odiado, normal/deficiente, rico/pobre, olhos azuis/olhos castanhos, macho/fêmea... agrupei os "fenótipos" de forma provocativa propositadamente. Onde dizer "basta"? A questão geral, em termos evolutivos, é que a espécie humana evolui também ao sabor da seleção natural (ex: co-evolução com agentes infecciosos) e/ou auto-imposta (cultural), apesar de alguns de nós gostarem de negar este fato. Em relação à biotecnologia e ao Watson, a questão é que pela primeira vez consideramos a hipótese de poder estender a nossa capacidade de previsão de fenótipos, e das suas implicações no processo de decisão de provocar ou não um aborto. Como sabemos, este processo poderia estender-se a uma fase pré-zigótica (como já se faz com algumas doenças), em que os potenciais progenitores poderiam decidir ter filhos ou não. É um processo seletivo (assortative mating) que é generalizado no mundo vivo. Eugenia??? Se tudo não fizesse parte de um processo seletivo determinista, por que diabo não acasalariamos ao acaso? Ah, mais c'est l'amour!!! Ou auto-engano, diriam alguns! Por favor, não interpretem mal as minhas reflexões! Apenas que tento, para mim próprio, separar o que é a tentativa de viver uma vida plena de emoções fortes, e o que é a tentativa de perceber como o nosso mundo funciona. A existência de mecanismos biológicos explicativos não me incapacitam para vivências espiritais transcendentais. São instâncias separadas, como diz o Daniel. Repito, til hamingju Suzana!!!

Maria Guimarães disse...

ah vai, mas é muito diferente casar com um nobel pra ter filho sabido e abortar um feto que não seja homozigoto pro gene da inteligência, ou coisa que o valha!
agora joão, na tua argumentação sobre a decisão do aborto parece que fica faltando algo que pra mim é central. não sei se generalizo indevidamente, suzana me diz. mas acho que toda mulher, mesmo que não tenha chegado perto da situação, já fez as considerações teóricas: eu faria um aborto? em que situações? e as respostas mudam ao longo da vida. nessas considerações entram sim reflexões éticas e de proteção do tipo "meu filho será bem-sucedido?". mas uma coisa muito forte é que a mulher tem dificuldade de dissociar o feto de si. já ouvi várias vezes sobre o susto que dá quando sai aquela outra pessoa que já tem sua personalidadezinha etc. e tal. e como parte da gente mesmo, não tem como não se pôr como parte central da equação. será que vou amar essa criança? tudo me diz pra abortar, mas será que dou conta do baque hormonal/emocional? e por aí vai. e não se trata tanto de egoísmo versus altruísmo, visto que nenê e mãe são uma unidade quase indissociável.
exagerei?
beijos.

Maria Guimarães disse...

ps. daniel, a nossa suzana tem outro texto aqui no blogue. outro soco no estômago, dessa vez para cientistas.

Anónimo disse...

Oi Maria,

Olha, se o outro texto da Suzana é uma bica tão forte quanto está... prefiro não ler. Até porque, depois de passar 3 dias resolvendo problemas com os servidores de email daqui da Física (HET) da Brown, nem tenho mais competência racional nem emocional pra enfrentar tais demônios... e vai que ela me diz que eu joguei minha carreira e, mais importante, minha vida (!), fora?! Melhor alimentar os demônios com pouco... ;-)

Agora, não me entendam mal, não pretendo usar meu exemplo (a seguir) como comparação, mas apenas como 'dica': Lembro quando eu extraí meu menisco [externo do joelho esquerdo] e da sensação de vazio que eu senti por alguns dias. E, logo que voltei a andar, da sensação de desequilíbrio, de não saber mais andar. (NB: É muito estranho vc ter que se re-ensinar a andar; principalmente se isso tem que ser feito de modo consciente, pensando em cada passo, em cada músculo, em cada tendão envolvido no processo! Bizonho... ;-)

Nesse sentido, eu mal posso começar a compreender tudo o que está envolvido na questão do aborto, quer vc justifique em casos de estupro, quer vc justifique em casos de eugenia, quer vc justifique em casos de doenças (síndromes cromossômicas incluídas aqui).

Ironias à parte, ainda nesse final-de-semana (domingão passado), a NBC passou um episódio da série "Law and Order: Criminal Intent" que abordava exatamente essa questão: "Uma mãe [omissa] querendo processar seu médico porque este não a avisou que sua filha [agora adulta] era portadora duma deficiência cromossômica."

Por outro lado, apesar de achar que vc exagerou um pouco, Maria, ao dizer que mãe e filho são uma unidade quase indissociável, eu entendo perfeitamente o quê vc quer dizer... e, sob esse aspecto, me sinto "a mosquinha do cocô do cavalo do bandido" pelo fato de ser homem. :-(

João, eu, pessoalmente, já tenho 'dificuldades' quando penso que um possível filho meu terá que passar pelas mesmas dúvidas que eu passei (duma maneira ou de outra) e que também terá que tomar decisões e fazer escolhas tão duras quanto as que eu tive que fazer. Imagina só falar de eugenia ou outras escolhas relativas ao feto... Pessoalmente, eu nem quero saber o sexo da criança no dia que isso acontecer: Quero ter toda a surpresa do mundo, satisfazendo meus arquétipos! ;-)

Ainda falando disso que vc parece chamar de 'determinismo'... talvez eu seja muito ingênuo, talvez eu não conheça o suficiente (sobre isso que vc chama de 'determinismo'), talvez... mas eu me nego a acreditar que sou apenas um subproduto dos meus hormônios! Aliás, isso é tão forte pra mim que acho que já virou um 'valor moral' faz tempo... hoje não é mais tão complicado mas, quando eu tinha uns 15 anos e estava no colégio... a coisa pegava mais feio e viver esse tipo de convicção era mais duro. ;-)

A minha visão pessoal de 'determinismo' é um tanto diferente daquela dos biólogos (ou de pessoas da área de biologia), pela simples razão deu ser físico-teórico-matemático. "Determinismo", pra mim, na melhor das hipóteses, prevê o que acontece com 1 partícula/objeto (mesmo que esse seja quântico e vc tenha que fazer considerações probabilísticas). Quando vc começa a falar de conjuntos de objetos, de estatísticas desses objetos (ie, quando vc começa a considerar 6,02x10^{23} de qualquer coisa!), a coisa muda completamente de figura. E, quando vc começa a falar de estatísticas desses conjuntos estatísticos, aí fica mais complicado ainda falar de 'determinismo'. (NB: Por incrível que pareça, atualmente estão até considerando interações quânticas presentes em 'DNA strands'! Então, certamente, essa história está longe de estar bem definida.)

Prótons, nêutrons, elétrons e quarks a gente consegue entender bem. Núcleos atômicos (primeiro grau estatístico) e átomos (núcleos mais eletrosfera - segundo grau estatístico) a gente consegue entender bem. Quando vc chega em moléculas a coisa já muda de figura, por exemplo, o problema do 'protein folding' ainda não é bem entendido (apesar de cerca de 70% do poder de computação mundial estar sendo usado para aplicações "biológicas"). Logo, biomoléculas (que costumam ser maiores, mais longas, do que moléculas) são ainda menos entendidas. Ditto para células... e, claro, ditto para organismos vivos.

É claro que essa pode ser uma visão reducionista demais para alguns. Porém, ela serve pra mostrar que apesar das trocas de paradigmas [reducionistas] que a química e a biologia fazem (com respeito à física e à química, respectivamente), existem diversas questões em aberto que tornam afirmações do tipo "somos subproduto dos nossos hormônios, logo, do nosso DNA" absolutamente não-triviais. E olha que eu nem entrei no mérito de questões chamadas de "Sistemas Complexos", como é muito bem feito no livro Evolution As Entropy (Science and Its Conceptual Foundations series) e no livro Scaling in Biology (Santa Fe Institute Studies on the Sciences of Complexity).

Então, é preciso se levar esse assunto de 'determinismo' "with a grain of salt": nem tanto ao mar, nem tanto à terra. ;-)

Bom, nessas alturas do campeonato eu já estou 'rambling on' (como diria Led Zepellin) demais... e, de verdade, ainda estou chocado com o simples fato da Suzana estar aqui, em NYC (enquanto eu estou aqui em Providence, RI): Um blog sobre ciência, de um grupo de amigos, e um deles está aqui do lado?! Coincidências da vida... :-)

Um abraço a todos, []'s!

Maria Guimarães disse...

tou agora sem tempo nem espaço mental, então só rapidinho:
daniel, quando você se recuperar vai ler: "Seleção natural no meio acadêmico: que vença o pior?", postado em 13 de fevereiro.
e não é bem como você me parafraseou: feto e mãe não são, na realidade, uma unidade indissociável. estou falando do íntimo da psicologia feminina. de parte das mulheres, pelo menos.

none disse...

Nossa, que beleza ver tudo isso de conversa! Como comentar tudo o que vocês disseram me escapa, mas quero responder a pergunta que a Maria me postou diretamente. Sim, toda mulher, pelo menos as que conheço e com quem conversei, já consideraram a hipótese teórica do aborto. Se faria ou não, e sob quais circunstâncias. Por conta daquela "atrasadinha" que pode acontecer e faz a gente pensar em todos os "possible outcomes". Acho que quanto mais real a possibilidade de estar grávida, mais difícil é a decisão. Lembro que quando tinha uns 16 anos dizia e batia o pé que se ficasse grávida muito cedo abortaria sem sombra de dúvida. Mas a minha certeza vinha do fato de que a possibilidade era remota. Certeza de quem realmente não sabe do que está falando!
Por outro lado acho que é um certo exagero dizer que a mãe e o feto sejam indissociáveis. Acho que logo no nascimento deve ser assim, uma coisa quase sobrenatural ver um ser, distinto de você, sair de dentro do seu "umbigo". Afinal o umbigo não é o símbolo máximo do ser? ;) Mas imagino que dentro de pouco tempo essa relação se estabeleça como uma espécie de simbiose, onde o bebê claramente depende da mãe e onde a mãe (por questões hormonais, emocionais e pessoais) também depende do bebê! Mas sobre isso também não posso opinar até ter o meu próprio bebê. Falar assim com certeza, só do que a gente ainda não sabe, né?

João, que é isso de til haming sei lá o quê? :) Eu confesso que me perdi um pouco na sua discussão de determinismo. Acho difícil falar de aborto no contexto de evolução, sistemas biológicos que separam, como você mesmo afirmou com o "c'est l'amour", as emoções das questões práticas. Enfim, muita coisa aqui, hein?
Daniel, você está aqui do lado, rapaz! Perdido em Rhode Island no meio das suas partículas! Quando quiser visitar a grande metrópole me avise e seja bem-vindo a essa minha cidade adotada! Vamos tomar uma cervejinha qualquer hora!
O outro texto é um murro bem mais fraco no estômago, don't worry!
Bom, começo aqui meu dia de escrever tese. Desejem-me suas boas energias bloguísticas!
abraços
suzana

Anónimo disse...

Maria,

Só pra sacanear com a sua falta de tempo, vou comentar novamente... ;-)

Eu não tive a intenção de te 'misrepresent', espero ter te citado corretamente. Mas, irrespectivamente (aff! esse é o famoso 'regardless'! e aí, Suzana, isso já serve de "energia bloguística"?! gastei todo o meu léxico agora ;-) disso, essa discussão vai virar Freudiana rapidinho! 8-)

Olha, eu sei que toda essa ligação feto-mãe (e, porque não, feto-pai) depende duma série de fatores que certamente estamos desconsiderando... agora, quando vc tem uma boa relação com sua mãe (assim como com seu pai), não há nada mais recompensador: Vc se sente confirmado, apoiado. Difícil é ter que viver na sombra de alguma coisa, nem que seja da nossa própria loucura e fantasia... Em compensação, Maria, já vi muitos pais (homens; e não 'parents') com ligações fantásticas com sua prole, muito melhor do que a das respectivas mães. E olha que nem começamos a considerar a variável 'tempo', ie, a maturidade (como bem lembrou a Suzana): A relação pais-filhos muda muito com o decorrer do tempo e o advento da maturidade. Como dizia meu avô: "Há de tudo nesse Mundão de meu-Deus!" :-)

Agora, nascer do umbigo... foi fantástico! You made my day! :-) Imagina só vc ser criado(a) numa típica família italiana... com mulheres pra todo lado... mexendo, brincando, apertando, etc, etc, etc... vira um "umbigo extendido"! Freud não tem nem noção de como começar a atacar esse problema! ;-)

Suzana: Convite mais-do-que-retribuído: Se vc estiver por essas bandas daqui de cima, the beer is on me. ;-)

Vamos todos, agora, as nossas teses! []'s!

Maria Guimarães disse...

gente, é impressão minha ou vocês estão tratando feto e criança como sinônimo? eu me referi somente ao período intra-uterino dos filhos! pra tentar explicar que, para uma mulher, é impossível fazer puramente o raciocínio do joão: "o que será melhor para esta criança no futuro?". ao contrário, a mulher (seus sentimentos, seu corpo etc.) está lá no meio da equação quando vem a hora de decidir por um aborto, ou mesmo considerar a hipótese teórica. suzana, você discorda disso ou só do jeito um pouco exagerado como eu tinha dito?

João Alexandrino disse...

Mas o processo de decisão sobre o feto é indissociável da mãe, e das relações desta com o seu meio social/cultural. E poderá existir também alguma projeção da mãe numa criança idealizada, e na relação mãe-criança, que um aborto inviabilzaria. O meu comentário não foi no sentido de separar a emoção do processo racional de decisão. Longe disso! Foi no sentido de pensar quais as razões apontadas mais frequentemente para o aborto, e refletir se elas não têm a haver com 1) previsão do sucesso daquele feto projetada no futuro pela mãe/pai, com base em premissas muito concretas, e 2) com seleção de fenótipos para os quais prevemos uma maior probabilidade de sucesso. Sucesso aqui será definido de acordo com a visão que cada um tenha sobre que vida vale a pena ser vivida.

none disse...

Má,
ah bom. é, acho que estávamos confundindo filho, feto, bebê dentro e fora do útero. Sim, concordo com o período intra-uterino, da impossibilidade de dissociar o feto de si, no caso da grávida. e acho que tem muita emoção que eu não vou fingir que entendo envolvida no assunto. mas acho sim muito difícil racionalizar o futuro de um bebe ainda no útero...
João, agora entendi melhor o que você quis dizer, ou seja, de olhar para as razões que levam ao aborto. acho que, em categorias, ficam dividas como você disse, entre considerações do sucesso do filho, e fenótipo mais inclinado ao sucesso, só que o mais interessante pra mim são as disparidades entre a decisão (racional) e a emoção por trás dela. O assunto é muito complexo... a discussão tá aquecida aqui! vocês têm que parar com isso, se não não acabo nunca essa análise de dados... ai como detesto estatística (em vários níveis) apesar de reconhecer seu valor. bom dia pra todos

Maria Guimarães disse...

pois é.
e eu por enquanto encerro minha participação porque senão amanhã não entrego minha reportagem e vocês ficarão sem tudo o que sempre quiseram saber sobre a ONU.

none disse...

aliás, Daniel,
você falou bem. não é que fui criada numa família italiana com a gente toda em volta de mesa no final de semana, mil filhos, tios, tias, primos, e o esquimbau...
:) acho que o conceito de umbigo vem daí, mas também vem daquela expressão de que quando alguém é egocêntrico só pensa no próprio umbigo!

eliminar cupim no Murumbi disse...

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