Muitos credos, uma só busca
A discussão de fevereiro no Roda de ciência mostrou que quando o assunto é ciência e religião, há uma tendência forte de se polarizar e escolher campos. Mas não precisa ser assim. Acabo de ler The Creation, de Edward O. Wilson, onde ele defende justamente que religiosos e não religiosos podem ter muitas diferenças, mas as semelhanças são muito mais importantes.
Há quem acredite que Deus – ou alguma divindade – fez o mundo; há quem defenda que a ciência já conseguiu explicar muito do processo evolutivo e não resta dúvida: o mundo não foi criado como ele é hoje. Ao contrário, quem vê o mundo com olhos científicos não tem dúvidas de que ele passou por milhões de anos de evolução em que formas de vida mais e mais complexas foram surgindo conforme pressões do meio ambiente.
O grito de Wilson em The Creation é simples: não importa como o mundo surgiu. O que importa é para onde ele vai. E do jeito que vamos, vai para o brejo (metafórico, porque os brejos naturais também caminham para o cadafalso). E se não concordamos sobre quem fez o mundo, restam poucas dúvidas (5%, segundo o relatório do Painel Intergovernamental sobre Mudança Climática) sobre quem é responsável por sua destruição: nós mesmos – e isto não é metáfora, eu e você estamos incluídos nesse “nós”, por mais consciência ecológica que tenhamos. E se não é ainda, nosso objetivo deve ser um só: preservar este planeta.
The Creation é uma carta para um pastor batista – o ramo da fé que fez parte da infância do próprio Wilson. Seu texto é sucinto, poético e envolvente. E convincente. Através de exemplos e explicações sobre a natureza, o autor deixa claro para qualquer leigo que o funcionamento da natureza é complexo e depende de interações tão inúmeras que não há como assumirmos o controle. E mais: afirma que espécies que consideramos insignificantes, como bactérias ou insetos, podem cumprir papéis tão essenciais que sua extinção causa desequilíbrios fatais ao ecossistema no qual vivem. Mas se o ser humano se extinguisse, os ecossistemas naturais não sofreriam nada com isso. Muito pelo contrário.
Para ajudar a salvar um mundo natural que sequer conhecemos (ele estima que 80% das espécies ainda estejam por descobrir, mas se não fizermos nada metade dos seres vivos terrestres estarão extintos até o fim deste século), Wilson invoca o fascínio natural que temos pela natureza. Segundo ele toda criança é um explorador, um naturalista, um selvagem no bom sentido. Se estimularmos isso em nossas crianças, elas podem tornar-se advogados, médicos ou engenheiros. Mas serão naturalistas, e isso é o que importa.
E ao endereçar seu texto a um pastor, prega uma união que transcenda credos: “...nossas diferenças metafísicas têm efeito mínimo sobre a conduta de nossas vidas. Meu palpite é que eu e você somos mais ou menos igualmente éticos, patrióticos e altruístas. Somos produtos de uma civilização que surgiu tanto da religião como do Iluminismo baseado em ciência. Não teríamos problemas em participar do mesmo júri, lutar as mesmas guerras, santificar a vida humana com a mesma intensidade. E com certeza também repartimos um amor pela Criação”.
Quando, ainda menino, se apaixonou pela natureza, Wilson enveredou pelo estudo da evolução e deixou a religião para trás. Tornou-se um biólogo de grande renome e dedica sua vida a entender e proteger a natureza. Através do convite ao pastor, ele inclui nesse caminho aqueles que não acreditam na teoria da evolução. E é um convite que pode render frutos. Na semana passada saiu no Estadão (ver aqui no Jornal da Ciência on-line) uma entrevista com Paulo Barreto, do Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia (Imazon), em que afirma que o discurso religioso tem mais impacto do que o científico, quando se trata de defender o meio ambiente.
Demo-nos as mãos. Somos todos irmãos neste mundo.
A foto acima, do cerrado no Parque Nacional de Emas, é de Frans Lanting, que ilustra também a capa de The Creation. Suas fotos são absolutamente deslumbrantes, vale visitar seu site.
Este texto é parte da discussão de fevereiro no Roda de ciência. Comentários aqui, por favor.
P.S. Depois de escrever este texto descobri que o livro de Wilson será publicado no Brasil pela Companhia das Letras, mas a data é ainda incerta.