Comento o artigo de opinião do médico, geneticista e professor titular da Universidade Federal de Minas Gerais Sérgio Danilo Pena, sobre “Ciência, bruxas e raças”, na Folha de São Paulo (com acesso aberto no Jornal da Ciência) da passada quarta-feira 2 de agosto.
Interessou-me especialmente a ciência prometida pelo título, mas o seu peso no texto era frustrante: 56 de um total de 716 palavras! Esclareço previamente que li com prazer a quase totalidade das restantes 660 palavras do artigo que não concernem à ciência, e que não comentarei. O artigo começa assim:
“Do ponto de vista biológico, raças humanas não existem. Essa constatação, já evidenciada pela genética clássica, hoje se tornou um fato científico irrefutável com os espetaculares avanços do Projeto Genoma Humano. É impossível separar a humanidade em categorias biologicamente significativas, independentemente do critério usado e da definição de "raça" adotada. Há apenas uma raça, a humana.”
Verifiquei, lendo o resto do texto, que Sérgio Pena pretendeu usar uma verdade científica para “instruir a esfera social”, estabelecendo uma analogia com a perseguição da bruxaria nos sécs. 16 e 17. Lê-se no sétimo parágrafo da edição impressa:
“Analogamente [à revolução científica no séc. 17, que tornou impossível a crença continuada em bruxaria], o fato cientificamente comprovado da inexistência das "raças" deve ser absorvido pela sociedade e incorporado às suas convicções e atitudes morais.”
Penso que esta afirmação encerra uma armadilha perigosa que tento revelar com a pergunta que deixo no final do texto.
O tema da realidade biológica das raças humanas é complexo e, ao contrário do que Sérgio Pena afirma, não existe uma opinião consensual sobre a questão na comunidade científica. O debate está longe de estar encerrado. O facto concreto que consubstancia a minha afirmação é sumariamente relatado abaixo.
Em 2003, realizou-se um encontro no National Genome Center at the Howard University em Washington D.C. com o título “Human Genome variation and ‘Race’: The State of the Science”, congregando peritos nas áreas de sociologia, antropologia, história e genética, para quebrar um ciclo de décadas de discussões emocionais e pouco científicas sobre a conexão entre genética e raças humanas.
Francis Collins assinou em 2004 um artigo na revista Nature Genetics 36, Supplement com algumas conclusões resumidas desse encontro em 2003. Todos os outros artigos deste suplemento especial da revista são interessantes e estão acessíveis no link acima. Transcrevi um excerto do artigo de Collins entitulado “What we do and don’t know about ‘race’, ‘ethnicity’, genetics and health at the dawn of the genome era”. Transcrevo os seguintes trechos:
"Is race biologically meaningless?
First, it is essential to point out that ‘race’ and ‘ethnicity’ are terms without generally agreed-upon definitions. Both terms carry complex connotations that reflect culture, history, socioeconomics and political status, as well as a variably important connection to ancestral geographic origins. Well-intentioned statements over the past few years, some coming from geneticists, might lead one to believe there is no connection whatsoever between self-identified race or ethnicity and the frequency of particular genetic variants [1,2]. Increasing scientific evidence, however, indicates that genetic variation can be used to make a reasonably accurate prediction of geographic origins of an individual, at least if that individual’s grandparents all came from the same part of the world [3]. As those ancestral origins in many cases have a correlation, albeit often imprecise, with self-identified race or ethnicity, it is not strictly true that race or ethnicity has no biological connection. It must be emphasized, however, that the connection is generally quite blurry bacause of multiple other nongenetic connotation of race, the lack of defined boundaries between populations and the fact that many individuals have ancestors from multiple regions of the world.
…
In that vein, the National Human Genome Research Institute convened a Roundtable on Race, Ethnicity, and Genetics on 8-10 March 2004, which was attended by a wide range of thought leaders in genetics, anthropology, sociology, history, law and medicine. A report of that meeting is being prepared for publication. The National Human Genome Research Institute is also sponsoring a consortium of funded investigators, known as the Human Genetic Variation Consortium, which is striving to address many of these unanswered questions."
Recentemente fui convidado por uma jornalista a expressar a minha opinião de especialista (biologia evolutiva) sobre a realidade biológica das raças humanas. Hesitei porque a diversidade biológica das populações humanas não é o meu objeto de estudo. O meu conhecimento científico dessa realidade resulta mais da leitura crítica de bibliografia científica e material de divulgação sobre a matéria. Por outro lado, a minha especialidade é exatamente o estudo da diversidade biológica (genética e fenotípica) e da sua distribuição (filo)geográfica, das interações genéticas e ecológicas entre populações diferenciadas (hibridação sensu lato e miscigenação), e de processos de especiação. Aceitei o convite.
Decidi aplicar os mesmos critérios de análise biológica que tenho aplicado a outros objetos biológicos (anfíbios) a dados de diversidade genética e fenotípica conhecidos para populações humanas. Explicitarei o meu pensamento detalhado noutra altura. Aqui apenas quero afirmar que não foi fácil chegar a uma conclusão dada a complexidade da realidade biológica. Os dados tanto podem ser usados para apoiar a realidade biológica de raças humanas como usados para concluir que a divisão da humanidade em raças não é a melhor forma de descrever a distribuição da sua diversidade genética. No final, escolhi este último caminho como aquele que é mais coerente com o meu percurso científico conceptual. Só que o meu percurso, a minha forma de ver o mundo como um conjunto de continuidades mais ou menos descontínuas está apenas a um passo de outra forma de ver o mundo, como um conjunto de descontinuidades mais ou menos contínuas. É um simples problema de iluminação de gradientes e de fractais. Lembram-se do fractal? Pois aí está, essa minha visão de mundo resulta da análise de gradientes espaço-tempo em realidades quasi-fractais.
A minha frustração com a comunicação de ciência do cientista Sérgio Pena resulta da aparente leveza da sua abordagem, dando a entender que a verdade anunciada é natural e insofismável perante os dados disponíveis. Mas a análise dos dados disponíveis sobre a diversidade genética humana levanta mais questões do ponto de vista biológico do que aquelas que permite responder. Claramente é necessária mais informação para iluminar os vários debates que se desenham no futuro. Estamos longe ainda de qualquer verdade científica! Assim sendo, penso que a comunicação da ciência à sociedade deveria ser, ou pelo menos parecer, mais rigorosa e cuidadosa.
Termino com uma pergunta a Sérgio Pena. Se surgisse algum dado novo que fizesse pesar o prato da balança em favor da realidade biológica das raças humanas, de que modo deveria essa verdade científica “instruir a esfera social”? Ou não deveria?
Proponho que se debata este tema um dia na(o) Roda de ciência.