23 julho 2006

Evolução e declínio do império neo-darwiniano

Alguns de nós (pres)sentimos a revolução emergente nos paradigmas da teoria da Evolução (e precisa?), mais empurrada pela evidência empírica do que pela genialidade das ideias. Esta parece que talvez tenha mesmo ficado aprisionada lá pelos fins do séc. XIX.

Do paradigma darwiniano restou a lei da Seleção Natural co-optada pelos obreiros da Nova Síntese neo-darwiniana em meados do séc. XX. O seu reducionismo genético extirpou da teoria da evolução um outro mecanismo, polémico é certo. O da transmissão de características adquiridas à descendência, que era o cerne da teoria da Evolução de Jean-Baptiste Lamarck.

O geneticista Sérgio Pena devota a sua última coluna mensal na Ciência Hoje online (
Deriva Genética) à descrição de alguns casos em que aquela transmissão epigenética (i.e. além dos genes) de características pode ocorrer. Aqui está o parágrafo inicial do seu artigo Viva Lamarck (!?):

"Coitado do Jean-Baptiste de Lamarck! O naturalista francês (1744-1829) é lembrado principalmente pela idéia, hoje meio ridicularizada, de que as características adquiridas são transmitidas à próxima geração. Isto sempre me traz à mente a visão de uma girafa esticando o pescoço para alcançar os brotos mais altos nas árvores e depois dando à luz girafinhas com pescoços igualmente espichados. Mas pouca gente sabe que foi Lamarck, e não Darwin, quem primeiro falou em evolução. A descoberta fundamental de Darwin foi o mecanismo correto da evolução, a seleção natural. Pois bem, pasmem vocês, parece que em algumas situações muito especiais pode ocorrer a herança de caracteres adquiridos! Quero deixar claro não se trata de nada que possa ameaçar de maneira alguma o cânone darwiniano. Mas talvez seja suficiente para fazer aflorar em Lamarck, dentro de sua cova, um sorriso nos lábios."

Curioso o trecho “Quero deixar claro não se trata de nada que possa ameaçar de maneira alguma o cânone darwiniano”. Mas lendo o parágrafo conclusivo da Origem das espécies de Charles Darwin, aqui na minha postagem anterior, facilmente se conclui que também Darwin aceitava que a variabilidade transmitida a gerações posteriores resultava de "ação indireta e direta das condições externas da vida, e pelo uso e desuso", o que equivaleria hoje a aceitar a hereditariedade epigenética. De facto, a hipótese pangenética da hereditariedade de Darwin era compatível com a transmissão da caracteres adquiridos. Então como a “herança de caracteres adquiridos” poderia ameaçar o “cânone darwiniano”?

Talvez eu tenha entendido mal o uso da expressão e desde já apelo a Sérgio Pena para esclarecer a minha dúvida. Mas, mesmo antes do esclarecimento prestado, vou ser provocativo e sugerir que Sérgio Pena se referia de facto ao cânone darwiniano que resultou do recondicionamento conceptual brilhantemente realizado pelos artífices da
Nova Síntese neo-darwiniana. Esta não resultou de unanimidade no universo do pensamento biológico, mas sim da vitória de uma escola de pensamento, a dos teóricos da genética populacional do mundo anglo-saxónico do pós-guerra. Parte importante do conhecimento em biologia, como a biologia do desenvolvimento embrionário, simplesmente não foi integrada na Nova Síntese, sendo que a discussão de como a informação hereditária é organizada para formar o organismo era, e ainda é, a grande questão central da biologia. Terá resultado desse recondicionamento o cânone darwiniano que é transmitido hoje aos garotos na escola e ao público leigo.

Evelyn Fox Keller, contou essa história da centralização do cânone darwiniano no gene de forma brilhante no seu “The Century of the Gene”, no final do séc. XX (2000). Mas Keller acredita que as boas ideias perduram e que sempre existirão cientistas em busca de desafios:

"No entanto, acredito que ainda muito há para ser dito. Darwin ensinou-nos a importância do acaso na evolução por seleção natural, mas também nos ensinou a importância do desafío. Com um espírito semelhante, sugiro que o desafío cria uma poderosa força diretora, também para a evolução do nosso entendimento dos processos da evolução biológica. Conseguimos já vislumbrar sinais dessa evolução no esforço dos teóricos evolutivos para fazer sentido dos mecanismos de estabilidade genética, evolutibilidade, e robustez do processo de desenvolvimento que análises moleculares começaram a revelar. Assim, prefiro terminar [o livro] com a previsão de que muito mais está por vir, talvez até um outro período Cambriano, só que desta vez não no âmbito do aparecimento de novas formas de vida mas de novas formas de pensamento biológico."

Do original de Evelyn Fox Keller The Century of the Gene (2000).
Tradução de João Alexandrino.

Pois escrevo estas linhas simplesmente para celebrar o acerto da previsão de Keller, revelado não só em diversos artigos científicos recentes (últimos 5-10 anos) mas especialmente no livro iluminado de Eva Jablonka e Marion Lamb com o título Evolution in Four Dimensions (2005). Um livro fundador de uma ideia mais abrangente de Evolução, um outro cânone, que finalmente parece fazer justiça à genialidade de Charles Darwin. A literatura científica maravilhosa de Jablonka e de Lamb, as belas ilustrações de Anna Zeligowski e os diálogos com Ifcha Mistabra estarão comigo nas próximas semanas, talvez meses, aqui neste blog. Fiquem por perto e estejam atentos aos prenúncios de queda do império neo-darwiniano. Viva Darwin!

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