05 julho 2006

Mais que um jogo...

...para quem sente o futebol como um símbolo belo da genialidade e superação coletivas!

Avante seleção do país dos castelos mouros, a seleção das quinas!.

A ansiedade aumenta, no caminho para mais uma grande batalha, decerto menos importante do que a de Ourique ou de Aljubarrota, mas mais uma para recuperar a dignidade perdida após Alcácer-Kibir. Nestas horas que antecedem a penúltima refrega, precisariamos do ânimo das palavras dos poetas guerreiros, herança lusitana dos nossos antepassados árabes. Mas mais sensatas e igualmente inspiradoras são as palavras de prosa que o poeta Manuel Alegre escreve no jornal português Público (05/07/2006).

Os grandes e o pequeno
Opinião

1. Como no poema de Sophia, também eu "gosto de ouvir o português do Brasil / onde as palavras recuperam sua substância total", gosto de ouvir esse português falado "com suas sílabas todas / sem perder sequer um quinto de vogal". Sim, gosto do português escrito pelos poetas e prosadores do Brasil e do português falado pelo povo, com suas palavras "concretas como frutos nítidas como pássaros". Gosto das canções brasileiras e, se me permitem, gosto do português jogado pelos seus grandes futebolistas, aqueles que tratam a bola como quem fala, como quem escreve, como quem afaga ou como quem dança. João Cabral de Melo Neto, Carlos Drummond de Andrade, Manuel Bandeira, Jorge Amado ou Guimarães Rosa no ritmo de Pelé, Garrincha, Tostão, Rivelino, Zico, Romário. Mas não foi esse o Brasil que esteve na Alemanha. O que se viu foi um Brasil sem poesia, nem samba, nem dança. Um Brasil sorumbático, treinado por um Parreira que é talvez o único brasileiro que come as sílabas, os pássaros e as vogais das palavras. E não me venham dizer que Ronaldinho Gaúcho é o melhor do mundo. Não é. O melhor estava do outro lado e chama-se Zidane. Creio que alguns brasileiros (e alguns portugueses também) estão convencidos de que o Brasil tem uma espécie de direito divino a ser campeão do mundo. Ora no futebol não há povos eleitos. Nem no futebol, nem no resto. Aquele Brasil sem festa mereceu voltar para casa. Foi pena. Mas talvez a lição faça bem e da próxima vez tenhamos um Brasil a jogar com as sílabas todas.

2. Também gosto da Argentina de Buenos Aires, dos seus arrabaldes e dos seus tangos, da incomparável orquestra de Francisco Canaro e do génio de Astor Piazzola, que desconstruiu, subverteu e reinventou o tango, a Argentina onde a palavra Sul encontra o seu exacto lugar geográfico. Gosto da Argentina da prosa e da poesia de Jorge Luis Borges, aquele que fala de uma "região onde o ontem pudesse / ser o Hoje, o Ainda, o Todavia." Esse espaço mítico do Sul ou dos bairros do ciúme e faca de Buenos Aires, o ritmo de Canaro e Piazzola, assim como a escrita de Borges, aparecem na inspiração e no fulgor dos seus jogadores de futebol. Maradona era isso tudo. E talvez mais. E nesta selecção, talvez uma das melhores de sempre, percebia-se um pouco de toda a beleza e mitologia que há nos versos de Borges, nos bairros ou nas pampas sem fim que terminam no sul do Sul. Mas um tipo estranho, chamado Peckerman, resolveu deixar o tango, o poema e o Sul no banco. Meteu Messi na gaveta e assassinou o que podia ter sido um dos melhores poemas deste Mundial.

3. Foram 120 minutos que não foram 120 minutos. Foram 120 minutos que duraram a vida toda. E terminaram com Portugal a subir ao céu levado pelas mãos de Ricardo. Poucas vezes vi uma expressão tão concentrada. Aquele homem estava em estado de graça ou de transe místico, só vi algo de parecido no rosto de Amália a cantar certos fados. Ou nas fotografias que fixaram o olhar de Manolete pouco antes de matar o miúra que o mataria em Linares. Foram momentos em que havia em Ricardo um não sei quê de místico, entre monge e toureiro. Pela segunda vez consecutiva ele abateu a Inglaterra nos penaltis. Um povo inteiro, de coração quase a estalar, ressuscitou à terceira defesa e saiu para a rua quando Ronaldo entrou a matar. Honra a Ricardo, à selecção e a Scolari. Quarenta anos depois voltamos a estar nas meias-finais do Campeonato do Mundo. Continua a haver uns inteligentes incapazes de gostar de futebol ou de tentar sequer perceber o fenómeno em que esse jogo se transformou. Outros fazem questão de lembrar que há mais mundo para além do Mundial e que depois tudo vai continuar na mesma. É certo que a selecção não pode resolver os problemas políticos e sociais do país. Mas há um milagre que ela conseguiu: foi despertar e entusiasmar os portugueses. Não é coisa pouca. Até porque, dizia Antero de Quental, "um povo de dormentes só no cemitério se encontrará". Graças ao futebol e à selecção de Portugal, há milhões de portugueses que vão continuar acordados. Até quando? Eis a pergunta a que já não compete à selecção responder.

4. Não serão as meias-finais nem a final desejadas pela FIFA. Portugal intrometeu-se e a selecção "canarinha" resolveu estragar a sua própria festa. Mas não só. Alterou também os planos dos senhores do futebol que já tinham projectado uma final entre a Alemanha e o Brasil. Por estas e por outras, era urgente fazer no futebol uma revolução semelhante à do râguebi: o recurso ao vídeo para esclarecer os lances controversos. Assim se evitariam tentações e se garantiria a verdade desportiva num Mundial que tende cada vez mais a ser dominado por gestores e burocratas não escrutinados ao serviço dos patrões maiores das grandes marcas. Não sei se tal revolução será possível. Os grandes interesses precisam de batota. No futebol e na vida. Que os nossos jogadores façam mais um esforço. Que joguem também contra quem nos bastidores não queria que eles chegassem onde chegaram. Não vamos ficar no quase. Vamos conseguir o golpe de asa para, desta vez, chegar além.

5. Um comentador do New York Times, com menos complexos do que alguns talentos nacionais, escreveu que, num torneio dominado pelos grandes, Portugal é agora o "Santo Patrono dos pequenos e periféricos, de todos os danados da mó de baixo." Gostei de ler estas palavras. Quando, em outros Mundiais, Maradona, que já declarou apoiar a nossa selecção, marcava um golo, eu tinha a sensação de que ele o fazia por todos os desdichados. É também por eles que os nossos vão agora jogar. Por todos os emigrantes e também por todos os imigrantes que trabalham no nosso país e já não têm outra selecção que os represente, por Angola, pelo Gana, pelo Togo e, também, se me permitem, pela Argentina e pelo Brasil, sem esquecer a minoria que, nos Estados Unidos, fez do futebol uma forma de resistência aos gostos dominantes. E até, sublime prazer, pelos nuestros hermanos que, de volta a casa, não têm outro remédio senão apoiar-nos. Vamos jogar contra uma selecção de que Le Pen não gosta, constituída por jogadores que merecem o nosso respeito. Mas temos que derrotá-los. Eles têm Zidane, nós temos Figo, as duas grandes revelações deste Mundial. E temos Deco, Cristiano Ronaldo e Ricardo, que eles não têm. Para muitos da minha geração, gosta-se da França como de uma namorada. Mas neste Mundial, a França, com o seu Platini engravatado, faz parte do campeonato dos grandes. Nós somos dos outros. Dos periféricos. Dos esquecidos. Dos da mó de baixo. Avante, portugueses, por todos os deserdados do mundo.

3 comentários:

Osame Kinouchi disse...

Ok, torcerei no sábado para Portugual conseguir o terceiro lugar...

Maria Guimarães disse...

nunca achei que fosse dizer isso, mas torço pra a gente voltar a ter um time como as seleções portuguesa e alemã. perderam, mas lutando - e muito.

via gene disse...

Torci muito por Portugal (apesar de não ter visto o jogo por estar no CBMEG...), e não só por causa do Felipão... não tenho palpite para Sábado (meus últimos palpitecos falharam feio...), mas fico na torcida pelos portugas!

abraços,
ana claudia