15 julho 2006

A cabeçada de um génio

Maria, não resisto a opinar, concordando!

No ténis, recordo as finais de Wimbledon entre Borg-McEnroe e Lendl-McEnroe. João Macarrão tinha coração, Borg era ciborgue, e Lendl cata-lêndeas. A minha paixão pela personalidade de McEnroe vinha tanto da sua (muitas vezes má) atitude em campo como pela genialidade do seu jogo. Ele era a antítese dos outros campeões.

O mesmo se passava com Mansell, por comparação a Piquet, Lauda, Senna ou Prost. Mais uma vez era a luta dos opostos que me atraía, embora deva confessar que sempre gostei do Piquet e que só comecei a torcer pelo Mansell depois de vê-lo a empurrar desesperadamente o seu carro sem gasolina para cortar a meta.

Poderia também falar do meu time de futebol, o português FC Porto, que está para os outros times grandes de Portugal como o Barcelona está para o Real Madrid. A explicação está na sua filosofia, que representa a luta e o trabalho de toda uma região contra o centralismo do poder, a asfixia dos cidadãos pelo estado clientelar e dos ideais republicanos (os legítimos!), o anti-estrelato e o coletivismo. E podem ter a certeza, se algum dia a filosofia do meu time mudar, entro em sabática de torcida!

Zidane, cidadão do bairro de La Castellane de Marselha, argelino e francês (por esta ordem, como ele próprio afirma), cuja vida particular nunca vi estampada na imprensa côr-de-rosa, indignou-se com os impropérios de Materazzi, no jogo da final da copa do mundo. Podia ter reagido de forma diferente, é certo. Quem sabe falar com o árbitro ou até chegar ao extremo de ameaçar sair de campo, como vi este ano fazer E'too, do Barcelona, depois de ter ouvido comentários racistas durante grande parte de um jogo.
Mas Zidane decidiu fazer justiça ali, naquele preciso momento em que a sua vida pública se cruzava com a sua vida privada. Com certeza não terá sido a primeira vez, e convenhamos que Zidane nunca foi um menino de coro de igreja, mas Zidane perdeu a sua cabeça esquentada, que se lançou movida por vontade própria que o corpo não pôde controlar, sobre o peito do vil Materazzi.

Na foto ao lado, Zidane recoloca a sua cabeça no lugar após a ter perdido e lançado sobre o peito descoberto de Materazzi.



Quando vi a imagem, tive pena de Zidane, preferia que não tivesse feito aquilo, tive pena de Materazzi porque a cabeçada de Zidane foi bárbara. Quando revi as imagens e percebi o que tinha sucedido, tive pena de Zidane, não tive tanta pena de Materazzi.

Zidane é cidadão do bairro de La Castellane de Marselha, argelino e francês. Mas aquela não foi a "cabeçada de um homem'', foi a cabeçada de um génio. E os génios são assim, dotados daquela imprevisibilidade de onde brotam as paixões irracionais.

14 comentários:

Silvia Cléa disse...

OI, João!

Gostaria de salientar um detalhe: futebol e, principalmente, copa do mundo é espetáculo; e, como tal, é catarse pura! Veja o ocorrido como um microcosmo de nossas vidas...
Sabe por que a cabeçada nos causa tanta espécie? Porque nos vemos nela, ou como vítima, ou como algoz! Estampar em nossas caras, metafóricamente, a nossa realidade, sem pedir permissão, não está no "contrato...A grita é geral, não porque faríamos diferente, mas porque não queremos refletir sobre o que há por trás do ato em si (nossas vidas)!
Agressividade não é de todo má. Ela é essencial para vivermos e sobrevivermos...Até no sexo há uma certa dose de agressividade. Mas é óbvio, que tudo necessita de um peso, de limites; principalmente, quando se convive em sociedade...quando há regras em jogo.
Mas precisamos parar de olhar para os atores e tentar analisar a mensagem. O que de nosso está presente no gesto que está nos incomodando tanto????

João Carlos disse...

Nós, os dinossauros, nos lembramos que Mané Garrinhcha só foi expulso de campo uma única vez em toda sua carreira: no jogo Chile x Brasil, na Copa de 62 (cansado de tanto apanhar do time da casa, ele revidou).

Em um episódio mais "recente", no jogo Inglaterra x Brasil na copa de 70, o "Capita" Carlos Alberto, de tanto ver o time apanhar dos ingleses, sob os olhos bovinos do árbitro, "suspendeu" um dos irmãos Charlton a mais de um metro de altura.

Maria Guimarães disse...

joão, muito bem dito. adorei.

esses dois exemplos do joão carlos me parecem na linha do artigo do Luís Carlos Lopes que mencionei - tem uma hora em que um homem acha que já agüentou demais.

Maria Guimarães disse...

silvia, interessante isso. tou aqui refletindo sobre o seu comentário. acho que você tem razão.

João Alexandrino disse...

Silvia, concordo. Acrescentaria que o que nos incomoda é o que nos fascina e vice-versa.

João Carlos, que afortunado você por ter assistido a essas bestialidades!

Abraços.

Anónimo disse...

Oi Pessoal,

Não sei se entendi direito o comentário do João... mas, de qualquer forma, Zidane nunca foi (nem nunca será!) metade do gênio que foram Garrincha, Pelé, Sócrates, Zico, Maradona... eu até poderia citar nomes mais recentes, mas acho que já estabaleci factualmente minha afirmação, além de não querer perder tempo discutindo amenidades (uma vez que os exemplos mais atuais podem levar a discussões mais acaloradas ;-). Fora isso, Zidane é um dos jogadores com mais cartôes vermelhos na carreira (18, segundo o "The Times" de Londres). Portanto, claramente, santo ele não é.

Agora, o Materazzi foi, no mínimo, abusado. Agora, todos nós sabemos que os italianos, quando o assunto é futebol, são sujos e apelam! Por outro lado, "trash talking" é parte integrante de qualquer esporte que eu já tenha visto! Será que vcs têm noção daquilo que deve ser dito pros jogadores brasileiros na Europa (principalmente agora com essa onda racista que se instala por lá)? Só da boca do Pelé eu já ouvi algumas poucas e boas estórias.

Porém, não sei se nada disso é importante pro que eu vou dizer agora: "Vc está lá, na final duma copa do mundo, seu último jogo, e, claro, está sob um ataque psicológico de primeira grandeza. Aí vc perde a cabeça e decide que a coisa escalou de 'trash talking' pra ofensa pessoal, mais ainda, vc decide que aquelas ofensas vc não vai levar pra casa. BUM, um animal dá uma cabeçada noutro." Até aí, tudo bem... a minha pergunta é: Isso tudo posto, por que é que o Zidane não deu aquela cabeçada na cara do Materazzi?!!! Porque, se vcs assistirem ao 'replay', vcs vão ver que o Materazzi ainda se joga pra trás, finge que caiu com a cabeçada... é notório, até os franceses e italianos que assistiram a final (aqui comigo) concordaram quando viram o 'replay'.

Não me entendam mal, não estou fazendo apologia da violência nem nada disso... mas, se vc está honesta e genuinamente ofendido, por que é que vc não age de acordo?! Desde quando cabeçada na barriga machuca alguém?! Em todos os meus anos de kung-fu, tá aí um golpe que eu nunca vi: Cabeçada na barriga. Eu já vi cabeçada no nariz (na cara), joelhadas e afins... mas, cabeçada na barriga... é hilário.

Ou seja, uma vez que vc perde, literalmente, a cabeça e decide jogar por água abaixo TUDO aquilo que vc construiu ao longo da sua carreira, manchando sua imagem na maior congregação esportiva (depois das olimpíadas) do planeta, é melhor vc fazer o serviço bem feito e mostrar com propriedade os seus sentimentos!

No final das contas, isso que eu estou falando não é muito diferente daquilo que disse a Silvia acima... é a justiça sendo feita in locus. E, como já dito acima, todos nós temos sede de justiça. Aliás, melhor que isso só se a partida estivesse sendo realizada no Circus Maximus! Aí seria coisa digna de cinema: dois gladiadores entretendo a platéia.

Apesar de entender os comentários acima, fico pensando: "Será que realmente ainda somos tão animais assim?!" O único espetáculo que ainda conseguimos dar é o da força bruta?! Coitado do futuro da raça humana... :-(

Por outro lado, ainda explorando o comentário da Silvia, lembro vcs da famosa e por vezes esquecida Democracia Corinthiana. Notem também que a rivalidade entre Palmeiras e Corinthians nasceu exatamente disso que a Silvia fala: Historicamente, o Palmeiras é o time da elite dos imigrantes italianos, enquanto que o Corinthians é o time dos imigrantes italianos que eram operários (muitas vezes esses eram os operários daqueles). Ou seja, até Marx e Engels ficariam impressionados: A Luta de Classes foi levada ao campo de futebol! A justiça seria feita ali, nos 90 minutos, com a bola, com o gol. E aí, em plena ditadura, me aparece a "Democracia Corinthiana"?!!! É puro êxtase... :-)

Faz 20 anos que eu jogo basquete (no Brasil e aqui nos USA)... nunca fui expulso 1 só vez, nem por falta grave, nem por excesso de faltas. Faz mais de 11 anos que faço kung-fu e nunca machuquei ninguém (nos treinos, porque eu me nego -- por princípio -- a competir). Por outro lado, das 2 ou 3 vezes (na minha infância ou adolescência) que eu realmente perdi a cabeça e parti pra briga (por causa de xingamentos todas elas), eu estava pronto pra um duelo digno do Circus Maximus: Nada de cabeçada na barriga, aquilo era um ataque a minha honra e seria tratado como tal. Como diz um ditado chinês: "O adversário deve ser humilhado ou destruído."

Por outro lado, tem outro ditado chinês que diz o seguinte: "Se o adversário é superior a ti, então por que brigar? Se o adversário é inferior a ti, então por que brigar? Se o adversário és como tu, então compreenderás o que tu compreendes e não haverá briga."

Realmente, estou com a Silvia nisso tudo... o negócio é que aquilo tudo, de alguma forma freudianamente doente, reflete nós mesmos... e, como nós, aquela atitude foi falha... nada de se escolher entre "paz" ou "guerra", decidiu-se por uma espécie de "meio termo", uma "quase guerra"... o resultado, como todos nós vimos, foi mais um desfile da ignorância humana, em sua mais pura forma (de ambos os agressores -- um físico e o outro psicológico).

Se depois de mais de 1000 anos da queda do Império Romano o melhor que nós conseguimos fazer ainda não passa de violência física... realmente, o futuro da humanidade é pior do que eu imaginava. :-(

[]'s.

Maria Guimarães disse...

quando vi a foto do segundo seguinte à cabeçada, no dia seguinte ao jogo, me impressionou a mão do zidane, pronta para dar um soco profissional. me pareceu que ele estava dizendo que poderia dar um soco no nariz, mas não ia dar. minha sensação foi a de que ele não queria levar um desaforo eterno pra casa, que nunca mais poderia revidar, mas é muito civilizado pra realmente arrancar sangue. e mesmo assim, aquela batalha ele ganhou. e levou pra casa o troféu moral.
a danuza leão escreveu sobre isso na coluna de hoje na folha de são paulo.

João Alexandrino disse...

Daniel, o génio do futebol de Zidane pode ser discutido, a cabeçada de génio do Zidane é fato a que bilhões assistiram.

Os génios violentos habitam em cada um de nós, esperando a sua hora, o estímulo certo. E eu diria que a humanidade já evoluiu muito nas últimas centenas de milhares de anos. Abs.

Silvia Cléa disse...

OI, Maria!

Só queria te dar um toque qto ao gesto de Zidane, que vc interpretou como sendo uma preliminar de um possível soco: quando estamos, nós todos - seres humanos - com raiva, em uma situação, digamos, de "tensão" há determinados mecanismos fisiológicos acontecendo em nosso organismo: essa explosão adrenérgica atua em vários órgãos e sistemas de nosso corpo, preparando-o para a luta ou para a fuga...resumindo, o fechar do punho é quase um resposta instintiva em todos que se encontram com muuuuuuuuuuuita raiva! É medular (ou seja, ele sequer pensou no que fez, ainda não planejava o soco...só sentia), entendeu?
[]s,

Maria Guimarães disse...

eu não interpretei como preliminar, mas como substituto mais civilizado.

João Carlos disse...

Vamos por partes:

Para Daniel: pois fique sabendo que o Pelé não era nenhum santo. Um dos recursos que ele mais usava era dar cusparadas na cara dos marcadores para provocar uma agressão e a consequente expulsão.

E é claro que qualquer esporte é uma versão mais ou menos "civilizada" do Circus Maximus. Ninguém assiste uma corrida de automóveis esperando ver uma procissão de São Cristóvão: todos querem ver são os acidentes espetaculares, as capotagens e as disputas roda-a-roda.

Mas eu concordo com a Maria: os "bad boys" estão fazendo falta. Eu - dinossauro que sou - sinto a falta de jogadores como Heleno de Freitas, Almir, e outros "bad boys" (me perdoem os paulistas - eu, como carioca, sou extremamente bairrista). E a repressão aos Romários e Edmundos só está nos tornando igualmente medíocres ao futebol europeu.

É em um conteto desses que um Felipão tem um suceso maior do que um Tele.

Coisa mais sem graça...

Silvia Cléa disse...

Oi, Maria!

Ahhhh! então, desculpe-me o erro de interpretação...

João Alexandrino disse...

João Carlos, eu não diria que o futebol europeu é medíocre, é apenas diferente. Concordo com alguém (não me lembro quem) que afirmava o futebol brasileiro era poesia e o europeu era prosa. Mas a genialidade e a mediocridade tanto existem na poesia como na prosa. Abs.

Maria Guimarães disse...

há uma proliferação de "jogos da cabeçada" na internet.
http://paginas.terra.com.br/arte/mariomoreno/zidane/
http://www.zappa.cc/zidane/
http://www.corriere.it/Primo_Piano/Sport/2006/07_Luglio/13/pop_gioco.shtml