01 julho 2006

Pesquisa versus proteção da natureza?

Já falei antes sobre a legislação anti-biopirataria, que acaba coibindo a pesquisa neste país. O tema é inesgotável, haverá sempre reclamações de lado e outro, novidades ou falta delas.

O resumo da história é que muitos pesquisadores se queixam de que a legislação que supostamente protege a natureza na verdade impede que se aprenda sobre ela. Na sessão de encerramento do III Congresso Brasileiro de Mastozoologia (estudo dos mamíferos), no ano passado, Rui Cerqueira (UFRJ) lamentou que no Brasil o zoólogo pode ir preso por fazer o seu trabalho. Segundo ele, nunca antes houve tanta perseguição aos cientistas.

Os cientistas brasileiros alegam que a burocracia é tão imensa que muitas vezes é mais possível estudar outra coisa, ou a natureza (menos rica) de outras paragens. Enquanto isso, lamentam, o desmatamento continua avançando porque os que trabalham na ilegalidade não pedem permissão, não têm endereço universitário nem fixo, portanto são mais difíceis de se capturar.

Escrevi outra notícia na ComCiência porque queria entender se a legislação é mesmo intransponível, e o que pode ser feito. Acho que não cheguei nem perto de entender todas as etapas necessárias para se obter licenças de coleta, pesquisa e envio de material biológico. Mas parece ser quase consenso que a lei precisa ser modificada para agilizar a pesquisa científica. Pelo menos é o que me pareceu ao conversar com Eduardo Vélez, diretor do Departamento do Patrimônio Genético do Ministério do Meio ambiente.

Segundo Vélez o Ibama está em busca dessas alterações, mas outras propostas de lei criminalizam ainda mais o pesquisador. Resta saber qual proposta será favorecida no congresso. Quem se interessa pelo assunto, é bom ficar de olho nos próximos meses.

Leia aqui a notícia que saiu ontem na ComCiência.


Para escrever a notícia, tive conversas muito interessantes com alguns pesquisadores e com Eduardo Vélez, do Ministério do Meio Ambiente. Algumas conversas foram por telefone, outras por e-mail. Recebi respostas muito completas do entomólogo Olaf Mielke, da Universidade Federal do Paraná. Vou copiar aqui (com a permissão do pesquisador) a entrevista na íntegra - não porque eu queira favorecer suas opiniões, mas é o que tenho de mais completo já escrito. Quem quiser pode me mandar outras opiniões, via comentários ou e-mail, que publicarei.

ComCiência - Qual a sua opinião sobre a legislação que regulamenta coleta e envio de material biológico?
Olaf Mielke - Não sou contra uma legislação e até pode existir, no entanto, no mínimo ela tem que ser exequível para poder ser cumprida. A obtenção de uma licença ou autorização não deveria ser difícil e demorada, como temos várias experiências. Não faltam notícias na demora e da falta de resposta por parte do IBAMA para solicitações de licenças ou autorizações, razão de muitos trabalhos ou até mesmo teses com compromisso de término estipulado pelo governo brasileiro, não terem sido concluídos. O problema é que os funcionários do IBAMA não têm conhecimento científico para emitir licença: ciência é coisa de cientista que deseja descobrir coisas novas e por esta razão um funcionário, mesmo pós-graduado em área biológica, não tem, e nem poderia tê-la. Cada caso biológico é um caso. Se fosse fácil somente necessitaríamos de um só biólogo para responder a todas as perguntas!
A legislação foi introduzida pela Lei da Fauna 5.197 e adaptada pela Portaria 332/março 1990. Em primeiro lugar posso afirmar que a lei foi escrita pelo Dr. José Cândido de Melo Carvalho quando com ele trabalhava em projeto de comércio de asas de borboletas que ele queria combater, juntamente com o tráfico de outros animais superiores (araras, macacos, tartarugas, etc.). Esta é a razão de estar explícitamente escrito no artigo 19 a palavra "lepidópteros", ou seja, as borboletas e mariposas, embora logo a seguir diga "e outros insetos", onde as borboletas estão incluídas. O Dr. José Cândido, meu primeiro patrão, amigo e companheiro de algumas excursões às fazendas de seus familiares, nunca condenou a coleta, o transporte e a remessa de exemplares entre instituições brasileiras e internacionais, e pesquisadores autônomos e amadores. Ele mesmo fez isto durante toda a sua vida e como comprovante é só olhar a sua coleção particular que foi vendida ao Museu Nacional do Rio de Janeiro. Infelizmente a lei foi redatada com bastante imprecisões. Por sua própria indicação orientei um sobrinho dele em organizar uma coleção de lepidópteros que até hoje está ativo. Assim o sendo, agora a lei passou a ser levada ao pé da letra o que faz com que toda a comunidade de biólogos esteja intranquila com o futuro de seu trabalho. A Portaria 332 elaborada por técnicos do IBAMA foi discutida, aprimorada e aprovada em congresso brasileiro de zoologia, realizado em fevereiro de 1990 em Londrina com cerca de 2000 zoólogos presentes; esta ai foi adequada e sempre atendeu às necessidades dos zóologos e biólogos em geral, pois que a maioria dos animais é invertebrado e para a sua coleta e transporte (este não mencionado, embora tenha que ser óbvio) para fins científicos e didáticos não havia necessidade de licença, ou autorização. Esta conclusão também se baseou na impossibilidade de o IBAMA conseguir atender o volume de prováveis solicitações de licenças ou autorizações.

ComCiência - É preciso traçar estratégias para inibir a biopirataria -- como fazer isso?
Olaf Mielke - Em primeiro lugar é necessário distinguir biopirataria de ciência, ou seja coletar, transportar e enviar material biológico para esta finalidade. Biopirataria: para mim se caracteriza quando alguém coleta material biológico para fins de produzir algum produto químico, genético, ou outro, visando lucros, ou seja, um produto farmaceutico, estético, etc., possuindo aspecto econômico. Para isto deveria ter uma regulamentação simples mas eficiente. O que está proposto é uma regulamentação "a priori", quando ainda não se conhece o resultado. Tenho a impressão que se fizermos uma legislação cujo cumprimento seja fácil e rápido, todas as pessoas ou empresas se submeteriam facilmente; até deveriam retornar alguma parte dos lucros, quem sabe ao CNPq para subsidiar pesquisas. Mas como está, é muito mais fácil apropriar-se de algum pouco material de uma forma não conveniente e depois dizer que o produto primário provém de algum país vizinho, e ficar com todo o lucro. Lembre-se que a Amazônia, onde está a tal biopirataria, não é só brasileira. Além do mais, quanto mais remédios surgiram para cuidar da nossa saúde, melhor. A biopirataria deve ser inibida, mas isto não justifica utilizar métodos que terminam com outras ciências. No caso da zoologia é muito fácil verificar se o animal é para fins científicos ou educacionais, ou comerciais. Outra estratégia para inibir a biopirataria é só fazer com que as instituições brasileiras, que devem conhecer os princípios biopirateados, os produzirem em escala industrial e disponibilizá-los comercialmente. Ai talvez não houvesse concorrência, pela desistência dos estrangeiros, e o Brasil ganharia dinheiro. Não estou muito familiarizado com os produtos biopirateados, no entanto, fala-se num produto da jararaca que noutro dia, em reportagem do Estado de São Paulo, foi esclarecido pelo próprio pesquisador brasileiro. Outras vezes são apreensões de aranhas carangejeiras; estas certamente são enviadas para pet-shops na Europa onde são vendidas para amantes da natureza que as mantém em casa, outros ainda são de insetos mortos destinados a colecionadores. Em qualquer feira de entomologia na Europa (e há dezenas por ano) se vende aranhas, escorpiões (não são insetos) e vários insetos vivos, ou mortos, de todas as partes do planeta para estas finalidades, contra a qual não se deve ter objeções e muito pelo contrário, até deveria ser estimulado no Brasil. Isto cria o interesse e o respeito pelo meio ambiente, tão necessário no Brasil. Não é a coleta que extermina com os invertebrados. Só para se ter uma idéia: na plantação de soja morrem 50 insetos por metro quadrado de inseticida aplicado. Quantos insetos morrem no Brasil por ano em plantação de soja? É só saber quantos metros quadrados são plantados e multiplicá-los por 50. E até hoje os insetos não terminaram.
Ciência: A coleta, transporte e remessa para fins científicos deveria continuar como está na Portaria 332, ou não ter legislação. Quando é para fora do país também deveria ser livre como sempre foi, pois as instituições remetentes mantém anotados em seus acervos o material enviado.
Finalidade educacional deve ser estimulada, e se for para fora do país poderia ser controlado de maneira simples (as delegacias regionais do IBAMA poderiam ter a prerrogativa da emissão da licença, com número controlado de animais por espécie por ano, ou algo assim), pois se for material vivo, ele certamente morrerá antes de a licença chegar do IBAMA central. Com uma legislação restritiva não vejo como continuar a ministrar aulas práticas nas universidades brasileiras; e só com aulas teóricas certamente não se atinge o objetivo programado. Sem o acesso ao material os cursos certamente perderiam o seu valor.

ComCiência - O que deveria ser modificado na legislação, do ponto de vista de facilitar a pesquisa científica?
Olaf Mielke - As leis em vigor, incluindo a dos Crimes Ambientais (9.605) são contraditórias; assim penso, deveria haver uma nova lei sobre tudo isto - se tiver que haver lei. Antes de mais nada, ciência é inovação e isto é de difícil regulamentação. Consequentemente o cientista ligado às instituições oficiais, ou seja, empregados pelos governos, deveriam ter a liberdade de trabalhar. Os casos reais de biopirataria documentados não deveriam inibir as demais ciências e não gerar esta paranóia toda. Há riscos em tudo na vida. Até durante o deslocamente de carro para o trabalho pode haver um acidente com morte, mas não é por isto que deva se eliminar o carro, ou o trabalho! Países do primeiro mundo não têm regulamentação para envio de exemplares de sua biota. Será que só o Brasil e mais alguns países do segundo mundo (Colômbia e ??) têm princípios ativos que poderiam gerar dinheiro?

ComCiência - Colaborações internacionais são necessárias? O trabalho não poderia, muitas vezes, ser feito aqui no Brasil (sem enviar material biológico para o exterior, portanto)?
Olaf Mielke - Aqui, ao contrário do que muitos burocratas pensam, ela é de fundamental importância para o biólogo. Antes de mais nada, qualquer ciência não pode ser local e exercida por uma só pessoa. Em todas as ciência há intercâmbio com colegas e colaboradores, e a biologia não deve ser diferente. Por exemplo: Em qualquer estudo biológico sempre se tende a comprovar a filogenia de um determinado grupo e isto só pode ser feito através do estudo dos exemplares, de qualquer lugar onde estejam. Num caso específico de lepidópteros: As espécies do gênero Celaenorrhinus têm uma distribuição geográfica pan-tropical, logo para estudá-las necessita-se de exemplares de todos os países onde as espécies ocorrem, ou nunca se conseguirá compreender a sua filogenia. Como isto também vale para pesquisadores de outros países, eles necesitam de exemplares brasileiros, logo uma permuta é conveniente. Sempre os entendimentos são bilaterais! Consequentemente o envio de material biológico tem que ser facilitado. Isto é um exemplo em estudo restrito, porém se deseja estudar a filogenia de uma família ou grupo maior, necessita-se de material de todo o grupo. A filogenia de Hesperiidae, uma família cosmopolita de lepidópteros, necessita, consequentemente, material de todas as partes. Logo intercâmbio é de extrema importância. Nestes casos também participam, além de colegas, os seus estudantes nos mais diversos níveis, e normalmente produzindo trabalhos publicados...
No caso da biologia, há mais exemplares brasileiros nos museus estrangeiros que nos brasileiros, uma vez que aqui nunca se deu muita importância à biologia, infelizmente isto ainda continua atualmente. Ao invés de se propor medidas saneadoras, acompanhadas com recursos financeiros, para estudar a biota brasileira, o que se vê de fato é um desestímulo ao seu estudo, manifestado pela falta de recursos e pela legislação complicadora. Muitos exemplares, ou mesmo, coleções biológicas brasileiras se perderam por falta de cuidado das instituições. No Museu Nacional, Rio de Janeiro, chuveu na coleção de lepidópteros, estragando centenas de exemplares valiosos; há outros exemplos.
Ainda mais, os tipos, ou seja, os exemplares sobre os quais se baseiam as descrições originais das espécies, estão quase todos em outros países. Isto se deu pelo fato de que aqui a zoologia só se iniciou no início do século passado, enquanto que o fundador da nomenclatura zoológica publicou o livro marco da zoologia em 1758 (na Suécia). Estes tipos jamais retornão ao Brasil, e também não necessitam voltar, pois depois de estudá-los e compará-los com exemplares em nossas coleções ele perde praticamente o seu enigma. É só o cientista brasileiro visitar o lugar onde estão depositados e ele resolve o seu problema.
O Brasil é um dos poucos países em que se deseja regular o acesso à sua biodiversidade; nos USA não há regulamentação, na Alemanha há, mas devido à conclusão de sua desnecessidade não é mais aplicada, outros países desenvolvidos também são assim. No caso de lepidópteros tenho conhecimento de que nos USA há alguns milhares de pesquisadores autônomos e amadores, na Bélgica e na Espanha há sociedades lepidopterológicas em que o Rei é o patrono. Nos USA e em toda a Europa há talvez centenas de sociedades entomológicas que congregam pesquisadores profissionais, autônomos e amadores, inclusive publicando as suas prórias revistas.
Concluindo: Uma opinião conclusiva é difícil, no entanto, se tiver que haver uma legislação, então que seja de aplicação fácil e rápida. Não é o cientista profissional, autônomo ou amador o responsável pela saida de produtos economicamente válidos, pois estes nem os conhecem. Pelo simples fato de não se conhecer, não se pode proibir de os biólogos trabalharem, ainda mais que o próprio governo brasileiro diz desejar conhecer a sua biodiversidade. Se assim o for, terá que permitir aplicar os métodos científicos aplicados internacionalmente. O Brasil não é uma ilha no planeta.

3 comentários:

Silvia Cléa disse...

Oi, Maria!

Excelente idéia a sua de transcrever a entrevista do Olaf! Realmente completa! Concordo qdo ele fala em exageros e que o profissional do Ibama, mesmo sendo pós-graduado, não tem competência para tais avaliações...é como na perícia, não dá para querer ir achando que entende de tudo, punindo as pessoas. Não é bem assim...Ele está coberto de razão!

Maria Guimarães disse...

Vou tentar pôr aqui sempre que der as opiniões mais completas dos pesquisadores. quando a gente escreve as notícias, não dá pra usar nem uma fração. às vezes é frustrante!

João Alexandrino disse...

É falso que "o Brasil seja um dos pouco países em que se deseja regular o acesso à biodiversidade"! Nos EUA existe regulamentação estadual, em Portugal e Espanha existe regulamentação. Num estado de direito e democrático, as leis são para cumprir, e para serem discutidas e alteradas se for necessário! Em democracia, o pecado de omissão legislativa é tão grave tão grave como o de impunidade perante a lei.